ESCUSA-SE AO CÉU COM A CAUSA
DO SEU DELÍRIO
Pois se para os amares não foram feitos,
Senhor, aqueles olhos soberanos,
Porque, por tantos modos, mais que humanos,
Pintando os estivestes tão perfeitos?
Se tais palavras e se tais conceitos,
Tão divinas, tão longe de profanos
Não destes por oráculo aos enganos,
Com que Amor vive nos mais altos peitos,
Porque, Senhor, tanta beleza junta,
Tanta graça e tal ser lhe foi deitado,
Qual ídolo nenhum gozara antigo?
Mas como respondeis a esta pergunta?
Que ou para desculpar o meu pecado,
Ou para eternizar o meu castigo?
(Obras Métricas)
In “Breve Antologia Poética do Período Barroco”
Colecção Brevíssima
Liv. Civilização Editora e Contexto Editora
D. Francisco Manuel de Melo
1608 – 1666
TALENTO BUROCRÁTICO
Palavra que o Eusébio é um rapaz astuto;
não é um imbecil, como há alguém que o pense.
Tinha um ar de quem anda em busca do Absoluto
e andava era a cismar na manga do amanuense.
Mal vagou o lugar foram dez cães a um osso,
e ele é que o abocou. Ora o comendador
(o tal que usa um grilhão pendente do pescoço)
influiu; mas o Eusébio inda operou melhor.
Foi aberto concurso, a bem da velha prática;
e o Eusébio (por si, sem ter quem o guiasse)
Fez no requerimento onze erros de gramática –
sete de ortografia e quatro de sintaxe.
Assim li num jornal. Os outros concorrentes,
sem um erro sequer, estavam muito abaixo:
o Eusébio apresentou asneiras convenientes
e foi ele, bem visto, o que alcançou despacho.
Ei-lo pois amanuense. Agora vai casar-se.
Comprou já chapéu alto e um valioso anel.
O pai gaba-o e diz: «É pena não formar-se!
Fazia-se dali um rico bacharel.»
É um moço prendado e é justo o seu alarde;
e então (e ele é que o diz) não tem sequer um vício...
Não há quem puxe um D como ele no Deus Guarde,
nem quem faça também mais erros num ofício.
Em contas, nem falar; é mesmo prodigioso;
não conheço ninguém mais forte na tabuada:
aquilo é segurinho, exacto, escrupuloso...
três vezes três são seis; dez, noves fora, nada.
Em suma, é um zeloso, um óptimo empregado.
Foi acertada a escolha; e só me desconsola
que ele não possa ser mais bem utilizado.
Que pena! Uma aptidão que dava um mestre-escola.
(Boston)
In “Rimas de Ironia Alegre”
Colecção Brevíssima – Maio de 1997
Liv. Civilização Editora e Contexto Editora
Garcia Monteiro
1859 – 1913
MAGRO, DE OLHOS AZUIS...
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão n’altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais, letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
In "Clássicos Portugueses – Trechos Escolhidos – Bocage – Sonetos"
Liv. Clássica Editora – Lisboa – 1943
Manuel Maria de Barbosa du Bocage
1765 – 1805
AQUELE CLARO SOL
Aquele claro Sol, que me mostrava
O caminho do Céu mais chão, mais certo,
E com o seu novo raio ao longe e ao perto
Toda a sombra mortal me afugentava.
Deixa a prisão triste, em que cá estava
Eu fiquei cego e só, com passo incerto,
Perdido peregrino no deserto,
A que faltou a guia, que o levava.
Assim co’ espírito triste, o juízo escuro,
Suas santas pisadas vou buscando
Por vales e por campos e por montes.
Em toda a parte a vejo e a figuro
Ela me toma a mão, e me vai guiando
E meus olhos a seguem, feitos fontes.
In “Poemas Lusitanos” – 1598
Mandado publicar por seu filho, Miguel Leite Ferreira
António Ferreira
1528 – 1569
VIDA
Choveu! E logo da terra humosa
Irrompe o campo das liliáceas.
Foi bem fecunda, a estação pluviosa!
Que vigor no campo das liliáceas!
Calquem. Recalquem, não o afogam.
Deixem. Não calquem. Que tudo invadam.
Não as extinguem. Porque as degradam?
Para que as calcam? Não as afogam.
Olhem o fogo que anda na serra.
É a queimada... Que lumaréu!
Podem calcá-lo, deitar-lhe terra,
Que não apagam o lumaréu.
Deixem! Não calquem! Deixem arder.
Se aqui o pisam, rebenta além.
- E se arde tudo? - Isso que tem?
Deitam-lhe fogo, é para arder...
In “Clepsidra”
Colecção: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses
Editorial Verbo
Camilo Pessanha
1867 – 1926
DESARREZOADO AMOR, DENTRO EM MEU PEITO
Desarrezoado amor, dentro em meu peito
Tem guerra com a razão, amor que jaz
E já de muitos dias, manda e faz
Tudo o que quer, a torto e a direito.
Não espera razões, tudo é despeito,
Tudo soberba e força, faz, desfaz,
Sem respeito nenhum, e quando em paz
Cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Doutra parte a razão tempos espia,
Espia ocasiões de tarde em tarde,
Que ajunta o tempo: enfim vem o seu dia.
Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
Nem dos seus. Que farei quando tudo arde?
In “Sá de Miranda – Poesias Escolhidas”
Editorial Verbo
Francisco Sá de Miranda
1481 – 1558
PROSEGUI, LUSITANOS VALOROSOS
Prosegui, Lusitanos valorosos,
No que, jurado haveis, feliz systema;
Não vos importe o impio que blasfema
Contra os vossos esforços generosos.
De torpes inimigos cavilosos
Lançai aos pulsos vis eterna algema:
De modo, em fim, que a tyrannia trema
De urdir-vos novos laços vergonhosos.
Ávante em vosso férvido denodo;
Esse monstro de peste e de horror tanto
Acabai de sumir no estigio lôdo.
No amor da Liberdade sacrosanto
Mostrai uma constancia ao mundo todo,
Que pelo mundo todo faça espanto.
Soneto VIII
(Sonetos, recitados no Real Theatro de S. João – Porto)
In “Collecção de Poesias Reimpressas e Ineditas”
Tomo I – 1860
Typ. Sebastião José Pereira – Porto
Antonio Joaquim de Mesquita e Mello
1792 – 1884
Nota – Grafia Original
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