O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
nas minhas cavernas que não desvendo,
meus tectos negros do fim do Mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”
“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes;
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”
09-09-1918
In “Mensagem”
Colecção Autores Portugueses de Ontem 2 – Junho/90
Estante Editora
Fernando Pessoa
1888 – 1935
DOBRADA À MODA DO PORTO
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje.)
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
In “Poesias de Álvaro Campos – Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
1890 – 1935
NÃO SEI SE É SONHO, SE REALIDADE
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema de sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da Lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
In “Cancioneiro – Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
1888 – 1935
XLVIII – DA MAIS ALTA JANELA DA MINHA CASA
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
In “Poemas de Alberto Caeiro – O Guardador de Rebanhos
– Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Alberto Caeiro/Fernando Pessoa
1889 – 1915
ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me passai!
05/08/1921
In “Cancioneiro – Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
1888 – 1935
VIVEM EM NÓS INÚMEROS
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu ‘screvo.
In “Odes de Ricardo Reis – Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Ricardo Reis/Fernando Pessoa
1887 – 1935
INTERVALO
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado –
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque o não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca –
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
In “Cancioneiro – Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
1888 – 1935
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