AS ALDEIAS
Eu gosto das aldeias sossegadas,
com o seu aspecto calmo e pastoril,
erguidas nas colinas azuladas,
mais frescas que as manhãs finas de Abril.
Pelas tardes das eiras, como eu gosto
de sentir a sua vida activa e sã!
Vê-las na luz dolente do sol-posto,
e nas suaves tintas da manhã!...
As crianças do campo, ao amoroso
calor do dia, folgam seminuas,
e exala-se um sabor misterioso
de agreste solidão das suas ruas.
Alegram as paisagens as crianças
mais cheias de murmúrios do que um ninho:
e elevam-nos às coisas simples, mansas,
ao fundo, as brancas velas dum moinho.
Pelas noites de Estio, ouvem-se os ralos
zunirem nas suas notas sibilantes...
E mistura-se o uivar dos cães distantes
com o cântico metálico dos galos.
In "Claridades do Sul"
Gomes Leal
1848 – 1921
JEITO DE ESCREVER
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto – o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno
luto das horas. Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! Do não, do
nem, do nada, da ausência e solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! Da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.
In “Líricas Portuguesas”
Portugália Editora
Irene Lisboa
1892 – 1958
O PERFUME
O que sou eu? – O Perfume,
Dizem os homens. – Serei.
Mas o que sou nem eu sei...
Sou uma sombra de lume!
Rasgo a aragem como um gume
De espada: Subi. Voei.
Onde passava, deixei
A essência que me resume.
Liberdade, eu me cativo:
Numa renda, um nada, eu vivo
Vida de Sonho e Verdade!
Passam os dias, e em vão!
– Eu sou a Recordação;
Sou mais, ainda: a Saudade.
In “Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade”
Editora Terramr – 2002
António Correia de Oliveira
1878 – 1960
UM MODO DE VER
Ela entrou, a sorrir, brejeira, com mistério,
Chegou ao pé da filha e disse-lhe ao ouvido:
«Parabéns! Arranjei-te um óptimo marido.»
A pequena espantou-se. «O Santos Desidério!»
Este Santos viajou pelo Celeste Império.
Tem seus contos de réis; mas vive aborrecido
Por ser imberbe e calvo. «O caso é divertido!»
Exclamou a pequena. E a mãe: «O caso é sério!»
E pôs-se a enumerar as boas qualidades,
O rendimento, o luxo, as ricas propriedades,
E a traça das mamãs, «morrendo por obtê-lo.»
A filha ouviu; e então, com modo sobranceiro,
Apenas observou que aquele cavalheiro
Era rico de bens - mas pobre de cabelo.
Horta
In “Rimas de Ironia Alegre”
Garcia Monteiro
1859 – 1913
MULHER, VEJO-TE NUA, EMBORA ESCONDAS
Mulher, vejo-te nua, embora escondas,
Sob as tintas de cândida tristeza,
As máculas da sórdida impureza,
A lepra vil das saturnais hediondas.
E contudo, enganando-me, ainda sondas
O mar largo da minha singeleza:
Supões-me, como o doge de Veneza,
Esposo fácil de corruptas ondas!
Não chores a meus pés esmorecida;
Lá mais tarde, nos palcos da cidade,
Farás de Madalena arrependida.
No vício pode haver honestidade:
Deixa-me em paz nas sombras desta vida,
Não me afrontes na minha soledade.
Vinho e Fel
In “Rimas”
Estante Editora – Dezembro.1990
João Penha
1838 – 1919
Mandaste-me dizer,
no teu bilhete ardente,
que hás-de por mim morrer,
morrer muito contente.
Lançaste no papel
as mais lascivas frases;
a carta era um painel
de cenas de rapazes!
Ó cálida mulher,
teus dedos delicados
traçaram do prazer
os quadros depravados!
Contudo, um teu olhar
é muito mais fogoso,
que a febre epistolar
do teu bilhete ansioso:
Do teu rostinho oval
os olhos tão nefandos
traduzem menos mal
os vícios execrandos.
Teus olhos sensuais,
libidinosa Marta,
teus olhos dizem mais
que a tua própria carta.
As grandes comoções
tu, neles, sempre espelhas;
são lúbricas paixões
as vívidas centelhas...
Teus olhos imorais,
mulher, que me dissecas,
teus olhos dizem mais,
que muitas bibliotecas!
In “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”
Selecção, prefácio e notas de Natália Correia
5ª Edição – Outubro de 2008
Antígona/Frenesi
Cesário Verde
1855 – 1886
ANGÚSTIA
Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar!... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...
Querer apagar no céu – ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, com o vento!...
E não se apaga, não... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga...
Vem sempre perguntando: «O que te resta?...»
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
In “Livro de Mágoas”
Sonetos – Estante Editora
Florbela Espanca
1894 – 1930
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