A FILHA
Ela toma a minha mão, leva-me a ver
esse pedacinho de mundo que nos coube
e eu vejo sempre pela primeira vez
porque tudo muda constantemente.
Cada manhã tem outra estrela-da-manhã
e em todas elas me levanto
para ir ver, pela mão dela,
o novo mundo que nesse dia há.
À noite, vou espreitar
essa pequena mão adormecida
que aprisiona um grão de vento
e o tesouro ameaçado da alegria;
as sombras descansam no escuro
e, a essa hora,
também dorme a mão de Deus,
ninguém segura o fio
que liga a minha a outras vidas.
Nunca quis ter uma bola de cristal
mas poder ir, pela mão da filha,
ver o futuro.
In “O Reino Perdido – 1986”
Álvaro Magalhães
N. 1951 (no Porto)
UM RIO DE LUZES
Um rio de escondidas luzes
atravessa a invenção da voz:
avança lentamente
mas de repente
irrompe fulminante
saindo-nos da boca
No espantoso momento
do agora da fala
é uma torrente enorme
um mar que se abre
na nossa garganta
Nesse rio
as palavras sobrevoam
as abruptas margens do sentido
In “O Pavão Negro”
Editora Assírio & Alvim – 2003
Ana Hatherly
N. 1929
NATUREZA MORTA DE JOSEFA DE ÓBIDOS
Talvez sustentes o que do tempo os frutos
nos vinham entregar, se os vemos próximos
do calor encontrado nestas salas
tão longas que se fecham e consomem
uma minúcia clara, agora extinta
na polpa que se adoça, e em tua fronte
pousou e se adelgaça a transparência
de recortes simétricos, nas rugas
de panos – as verónicas – que exalam
a humidade pura, que das folhas
chegasse, quando as vemos desprendidas
noutras colchas mais fundas que sustentem
as molduras que cercam o sentido
de estar ausente a face que nos olha.
In "Casa: O seu Desenho" IN-CM – 1985 – Lisboa
Fernando Guimarães
N. 1928
AQUELA NUVEM
Aquela nuvem
Parece um cavalo...
Ah! Se eu pudesse montá-lo!
Aquela?
Mas já não é um cavalo,
É uma barca à vela.
Não faz mal.
Queria embarcar nela.
Aquela?
Mas já não é um navio,
É uma torre amarela
A vogar no frio
Onde encerraram uma donzela.
Não faz mal.
Quero ter asas
Para a espreitar da janela.
Vá, lancem-me no mar
Donde voam as nuvens
Para ir numa delas
Tomar mil formas
Com sabor a sal
- Labirinto de sombras e de cisnes
No céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal...
In “Poesia IV” – 1970
José Gomes Ferreira
1900 – 1985
ARTE POÉTICA
De anjos falo – os seres
que por aqui transitam
entre a recepção e a psiquiatria
e durante horas se enredam em novelos
onde as cores misturadas ampliam
os berros e as carícias sob as sombras.
Os seres que se masturbam
na solidão do mundo e sem lágrimas
rebentam com o peito contra as grades, fulminados
da azáfama dos pássaros nos cabelos
e a ausente presença de Deus
sobre os ombros
De anjos falo – no aterrador silêncio
perscruto-os em busca do refúgio
que não pode encontrar-se neste tempo
em que a vertigem fere as asas
imortais dos seres proscritos.
In “Poesia Digital – 7 Poetas dos Anos 80”
Campo das Letras, 2002
Amadeu Batista
N. 1953
PINGAS DE CHUVA
Caem,
Gordas, sonoras,
Monótonas pingas de chuva,
- Espaçadas -
E indolentes
Vão marcando uma toada:
Ping pang - ping pang,
As pingas
De chuva do Outono pardo.
Espapaçada
A terra mole absorve
As vagas de chuva densa
Que lenta vai caindo,
Em pingas grossas, sonoras.
E ao cair,
A chuva bate o compasso
Com o som dum contrabasso...
Ping...
Pang...
Ping...
Pang…
In “Poemas do Tempo Incerto”
Adolfo Casais Monteiro
1908 – 1972
TU DORMES
Tu dormes embalado nos rochedos
E aos meus ouvidos vem falar o vento.
Escuto, busco, chamo e não respondes,
E todo o mundo se tornou fantasma.
Estou fechada, suspensa, prisioneira
Queria voltar para fora, para o dia,
Ressurgir, respirar, tornar a ver,
Mas todo o mundo se tornou fantasma.
E a voz do mar encheu o céu e a terra
Uma voz que está cheia e se quebra
E nunca mais acaba.
Pássaros brancos cortam as janelas,
Anémonas cintilam nos rochedos:
Terror de estar sozinha e de escutar
Com este tempo morto entre os meus dedos.
In “Obra Poética I”
Editorial Caminho – Março de 1998
Sofia de Mello Breyner Andresen
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