RUA DE CAMÕES
A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe
Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho
Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva
Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto
E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça
O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia
Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão
A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes
Não olhes para os rapazes
que é feio.
In “Um Quarto com Cidades ao Fundo” – poesia reunida (1980-2000)
Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2000
Inês Lourenço
N. 1942
AO PORTO
Ó meu severo berço de granito!
(Este lembrar-te é um luar do fim?)
Vi os fiords – não valem o teu rio!
O melhor da tua força manda em mim.
A tua fala é um gume leal.
Avulso, o teu sabor independente,
amigo ou inimigo – uma só fé!
Quando a névoa te cobre – um rosto ausente.
In “Linha de Terra”
Editora Inquérito – Lisboa – 1951
António de Sousa
1898 – 1981
MAR
Há um retrato de grupo muito particular
que me é especialmente caro,
algo assombroso
e que eu guardo em frente
a certos livros, numa estante
que confina com a passagem para a varanda
de onde se avista o mar
em minha casa.
Quando o olho vejo o mar
que instantaneamente assalta
a periferia da visão
e perturba levemente
a relação de transparência
que eu desejaria estabelecer
com as personagens.
Quando, pelo contrário, olho o mar
vejo-as a elas
e as figuras ascendem à condição de viventes
na reminiscência
e na memória.
E contudo
eu desconheço-as.
Formam um grupo anónimo
que recortei de um lugar
onde as acompanhava a sua história.
Que não li.
São três homens de meia idade,
duas jovens mulheres,
uma criança.
Não sei porque os amo.
Sei que estão todos mortos.
Foz do Douro, 1998
In “Os Retratos” – Edições Pedra Formosa – Guimarães
Laureano Silveira
1957 – 2008
O ÚLTIMO DIA DO VERÃO
Pois às vezes me falta a quem contar
certo dia passado de princípio ao fim
o encanto que tenha realmente
a insistência do vento ao longo da Foz
aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão
Nascemos e vivemos só algum tempo
não temos nada
não podemos mesmo na penumbra
decidir a atenção ou o esquecimento
as forças soçobram como vagos motivos
em público
e em qualquer lugar
Por isso sei tão bem o valor
da natureza indiscutível dos teus olhos
onde a luz anota seus aspectos
teus olhos impacientes e irrealizáveis
que me acompanham
agora que sozinho danço
na cidade vazia
In “De Igual Para Igual” – Poesia Inédita Portuguesa
Assírio & Alvim – 2001
José Tolentino Mendonça
N. 1965
O ARCO DE SANTANA
Debruçámo-nos no parapeito,
sobre a Igreja dos Grilos,
Garrett atravessa o Arco de Santana,
atinge o largo fronteiro à igreja
e começa a imaginar o seu romance:
a história do burgo, a exclusão
medieval da fidalguia. O dédalo
de ruas sujas faz nascer a intriga
que poderá desenvolver se as bocas
dos canhões da Serra do Pilar não
ferirem o dia do Batalhão Académico
instalado nos Grilos. O barroco
da frontaria interessa-o, discutiu
com o soldado Herculano a traça
do abrigo em que repousam. Cercados,
sem saber das sortes do dia de amanhã
que pode ceifar sonhos. A morte
presente filtra milhares de coisas
que buscam o seu desenho no incerto
futuro. Nascido na rua do Calvário
na transição do século não espera
mau augúrio desse facto. A vida terá
de lhe ser dominada e fiel. Esta tarde,
se o tiroteio não for impeditivo,
vai começar a escrever. Deste muro,
olhamos a frontaria deserta; ninhos
de andorinhas entre as volutas. Sonhamos
o soldado Garrett: ele detém-se antes
de entrar na gélida penumbra
do abandonado convento, segue
por alguns segundos o voo das aves
– e o das suas ideias –. Volta-se,
olha o céu, já se ergue um vento
que traz do Sul as nuvens. Pode até
chover. Será, para trabalhar o destino
de Aninhas, uma tarde propícia.
6.2.97
In “Daqui Houve Nome Portugal”
Org. de Eugénio de Andrade – Edições Asa
Egito Gonçalves
1920 – 2001
AS MULHERES DA CANTAREIRA
Naturalmente, antes de as manhãs
pegaram fogo a todas as palmeiras,
gastaram elas os perfumes nas rochas,
levaram os seus seios para as ondas,
lavaram os seus sexos no rio,
lavraram os limos com os lábios.
Anteriores às gaivotas,
desenharam o seu voo nas águas,
descrevendo na areia
o coleante deambular dos vermes,
vendidos no termo das semanas
aos amantes da pesca.
Virtualmente, antes de o Inverno
lhes mudar o semblante,
comer à sua mesa e violá-las,
elas eram só música,
trazendo, levando, conduzindo
todos os barcos pelo mar do seu corpo.
Mais antigas que os ventos e a paisagem,
muitas vezes fizeram de sereias,
de estrelas breves consumidas
em vinho ou em cerveja,
outras de frio aço e aguardente,
alguns momentos de tabaco loiro.
(São putas? São fidalgas? São senhoras?
Netas bastardas de Raul Brandão?)
Meigas, transparentes, adejantes,
antes de os elementos
cismarem em criá-las,
já elas eram feitas
como deusas cumpridas
em fumo, mito e névoa.
Como estátuas fenícias?
Como estátuas.
In “A Condição Reflexa” – (Poemas, 1952-1982)
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
António Rebordão Navarro
N. 1933
DESCIA A NEBLINA
Na pastelaria duas
prostitutas conversavam. A magreza
de uma delas impressionava.
Não havia mais ninguém. Cadeiras
alinhadas, mesas vazias. Tudo limpo,
espelhos sem mácula. Os criados
pareciam estátuas por detrás
do balcão. Na rua, os automóveis
conduzidos por loucos. Em plena
cidade, quase aldeia, tal
velocidade é para matar.
Ao sair, o ruído era semelhante
à imagem do Inferno reproduzida
no catecismo. Descia a neblina
sobre os prédios, gaivotas
vinham da Foz. Um mendigo de barbas
atravessou a rua, despreocupadamente.
In “Erosão de Sentimentos”
Editorial Caminho
Isabel de Sá
N. 1951
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