AMO O TEU TÚMIDO CANDOR DE ASTRO
Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva
Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata
Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar
Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto
In "O teu rosto" – 1994
António Ramos Rosa
N. 1924
ESBOÇO
O seu perfil de sombra iluminado
pela agonia rubra do sol-pôr;
e, ao longe, e ao longe, o seu olhar magoado
como um olhar de anunciação e amor...
O seu perfil de mágoa, ainda encoberto
na sombra que este sonho fez maior,
e o seu olhar sem fim, como um deserto
de sombra, bem maior que a minha dor...
O seu perfil esguio, o seu perfil
de Outono e primavera: - o mês de Abril,
em Outubro, a querer reverdecer...
O seu perfil de noite e de alegria,
laivado, aqui e além, da luz do dia,
que no sol-pôr, além, vai a morrer...
Anrique Paço D’Arcos
Henrique Belford Correia da Silva – Conde de Paço D’Arcos
1906 – 1993
NATAL DE 1971
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
As cinzas de milhões?
Natal de paz agora
Nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
Num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
Roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
Em ser-se concebido,
Em de um ventre nascer-se,
Em por de amor sofrer-se,
Em de morte morrer-se,
E de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
Quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
Num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
Com gente que é traição,
Vil ódio, mesquinhez,
E até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Ou dos que olhando ao longe
Sonham de humana vida
Um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
E torturados são
Na crença de que os homens
Devem estender-se a mão?
In “Exorcismos”
Jorge de Sena
1919 – 1978
O INVERNO DA VIDA
É por dentro de mim que peregrino,
Nesta hora de angústia e de amargor!...
Pois já venho sofrendo. De menino,
Maus Invernos, de morte e de rigor!
Deus quer que eu cumpra assim o meu destino
De Poeta e Mendigo do Amor!...
Quem nasceu para os rumos do Divino,
Terá que ser eterno sofredor!
Depois de tanto Inverno e tempestade,
Do que fui, vejo assim tombar a árvore,
Só me restando a compaixão de Deus!
Quando chegar a hora do meu fim,
Não importa se lembrem mais de mim,
- Mas não deixem morrer os versos meus!
In “Etéreas Sinfonias de Natal”
Castro Reis
1918 – 2007
O INVERNO
Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.
Vem de sobretudo,
Vem de cachecol,
O chão onde passa
Parece um lençol.
Esqueceu as luvas
Perto do fogão:
Quando as procurou,
Roubara-as um cão.
Com medo do frio
Encosta-se a nós:
Dai-lhe café quente
Senão perde a voz.
Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.
In "Aquela Nuvem e Outras"
Eugénio de Andrade
1923 – 2005
LÁGRIMA DE PRETA
Encontrei uma preta
Que estava a chorar,
Pedi-lhe uma lágrima
Para a analisar.
Recolhi a lágrima
Com todo o cuidado
Num tubo de ensaio
Bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
Do outro e de frente:
Tinha um ar de gota
Muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
As bases, os sais,
As drogas usadas
Em casos que tais.
Ensaiei a frio,
Experimentei ao lume,
De todas as vezes
Deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
Nem vestígios de ódio,
Água (quase tudo)
E cloreto de sódio.
In "Poesias Completas"
António Gedeão
1906 – 1997
OS DOIS SONETOS DE AMOR
DA HORA TRISTE
Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro
do que tu – não deixes fechar-me os olhos,
meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
e ver-te-ás de corpo inteiro
como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
dentro de mim, se então tiveres coragem,
fecha-me os olhos com um beijo.
Eu, Marco Pólo,
farei a nebulosa travessia,
e o rastro da minha barca
segui-lo-ás em pensamento.
Abarca nele o mar inteiro, o porto, a ria...
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.
II
Não um adeus distante
ou um adeus de quem não torna cá
nem espera tornar. Um adeus de até já,
como a alguém que se espera a cada instante.
Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar
de novo para ti, no mesmo barco
sem remos e sem velas, pelo charco
azul, do céu, cansado de lá estar.
E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação
E não quero que chores para fora,
Amor, que tu bem sabes que quem chora
assim, mente. E se quiseres partir e o coração
to peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino
talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino?
Álvaro Feijó
1916 – 1941
FONTE – I
Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo –
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.
Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.
Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.
Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.
Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.
Herberto Hélder
N. 1930
E ALEGRE SE FEZ TRISTE
Aquela clara madrugada que
Viu lágrimas correrem do teu rosto
E alegre se fez triste como se
Chovesse de repente em pleno Agosto.
Ela só viu meus dedos nos teus dedos
Meu nome no teu nome. E demorados
Viu nossos olhos juntos nos segredos
Que em silêncio dissemos separados.
A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
Por onde um automóvel se afastava.
E viu que a Pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
Que fez tão triste a clara madrugada.
In "O Canto e as Armas"
Manuel Alegre
N. 1936
ALDEIA
Nove casas,
Duas ruas,
Ao meio das ruas
Um largo,
Ao meio do largo
Um poço de água fria.
Tudo isto tão parado
E o céu tão baixo
Que quando alguém grita para longe
Um nome familiar
Se assustam pombos bravos
E acordam ecos no descampado.
In "Poemas Completos"
Manuel da Fonseca
1911 – 1993
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