FELINA MULHER
Eu quisera depois das lutas acabadas,
na paz dos vegetais adormecer um dia
e nunca mais volver da santa letargia,
meu corpo dando pasto às plantas delicadas.
Seria belo ouvir nas moitas perfumadas,
enquanto a mesma seiva em mim também corria,
as sãs vegetações, em intima harmonia,
aos troncos enlaçando as lívidas ossadas!
Ó beleza fatal que há tanto tempo gabo:
se eu volvesse depois feito em jasmins-do-cabo
– gentil metamorfose em que nesta hora penso –
tu, felina mulher, com garras de veludo,
havias de trazer meu espírito, contudo,
envolto muita vez nas dobras do teu lenço!
Guilherme de Azevedo
1839 – 1882
FERVET AMOR
Dá para a cerca a estreita e humilde cela
dessa que os seus abandonou, trocando
o calor da família ameno e brando
pelo claustro que o sangue esfria e gela.
Nos florões manuelinos da janela
papeiam aves o seu ninho armando,
vêem-se ao longe os trigos ondulando...
Maio sorri na Pradaria bela.
Zumbe o insecto na flor do rosmaninho:
nas giestas pousa a abelha ébria de gozo:
zunem besouros e palpita o ninho.
E a freira cisma e cora, ao ver, ansioso,
do seu catre virgíneo sobre o linho
um par de borboletas amoroso.
Gonçalves Crespo
1846 – 1883
OS ROUXINÓIS
No meu jardim, num cedro em que a frescura
e a flor da novidade vêm brotando,
pousa, por vezes, um ditoso bando
de alegres rouxinóis, entre a verdura. . .
Quando ali vou, tristíssimo, à procura
de sossego e de luz, de quando em quando,
sinto-os vir e pousar, ouço-os cantando
no doce idílio de uma paz obscura.
E, desditoso, eu lembro com saudade,
último brilho do meu peito ardente,
que assim também, num íntimo vigor,
sobre o flóreo jardim da mocidade,
cantaram na minh'alma alegremente,
como no cedro, os rouxinóis do amor!...
In "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou"
J. G. de Araújo Jorge – Vol. II – 1ª Ed. 1966
António Fogaça
1863 – 1888
BENDITA
Lá vem a Rainha Santa
Que povo e rei tudo encanta!
Rainha pela beleza,
Rainha pela virtude!
Traz também no seu regaço
Rosas do jardim do paço
Com que rei e corte ilude...
Mas com que vale à pobreza
E aos enfermos dá saúde!
Por isso muita alma aflita,
Sorrindo na desventura,
Em na vendo assomar grita:
- Oh! Bendita formosura
De corpo e alma... bendita
João de Deus
1830 – 1896
MANIAS!
O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada, –
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,
Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!
Cesário Verde
1855 – 1886
JORGE
Constantemente vejo o filho amado
Na minha escuridão, onde fulgura
A estática pupila da loucura,
Sinistra luz dum cérebro queimado.
Nas rugas de seu rosto macerado
Transpira a cruciantíssima tortura
Que escurentou na pobre alma tão pura
Talento, aspirações... tudo apagado!
Meu triste filho passas vagabundo
Por sobre um grande mar calmo, profundo,
Sem bússola, sem norte e sem farol.
Nem gozo nem paixão te altera a vida:
Eu choro sem remédio a luz perdida,
Bem mais feliz és tu, que vês o sol.
IN "Nas Trevas"
Camilo Castelo Branco
1825 – 1890
INTIMIDADE
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela – e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...
Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.
Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!
E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, juras
– mentindo – que me tens amor...
Antero Quental
1842 – 1891
E EU TE ENCONTREI, NUM ALCANTIL AGRESTE
E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!
Alexandre Herculano
1810 – 1877
AO CAIR DAS FOLHAS
Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,
Fechar-me os olhos e compor-me o leito,
Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,
Eu me for viajar para o Sol-posto.
De modo que me faça bom encosto,
O travesseiro comporá com jeito,
E eu tão feliz! por não estar afeito,
Hei-de sorrir, Senhor! Quase com gosto.
Até com gosto, sim! Que faz quem vive
Órfão de mimos, viúvo de esperanças,
Solteiro de venturas, que não tive?
Assim, irei dormir com as crianças
Quase como elas, quase sem pecados...
E acabarão enfim os meus cuidados.
Clavadel, Outubro, 1895
(Este poema é dedicado a sua irmã Maria da Glória)
António Nobre
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