Sexta-feira, 28 de Setembro de 2007

Recordando... Natália Correia

 

O ENCONTRO

Como se um raio mordesse
meu corpo pêro rosado
e o namorado viesse
ou em vez do namorado

um novilho atravessasse
meus flancos de seda branca
e o trajecto me deixasse
uma açucena na anca

como se eu apenas fosse
o efeito de um feitiço
um astro me desse um couce
e eu não sofresse com isso

como se eu já existisse
antes do sol e da lua
e se a morte me despisse
eu não me sentisse nua

como se deus cá em baixo
fosse um cigano moreno
como se deus fosse macho
e as minhas coxas de feno

como se alguém dos espaços
me desse o nome de flor
ou me deixasse nos braços
este cordeiro de amor

 

 

Natália Correia

1923 – 1993
 

 

 

 

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Segunda-feira, 24 de Setembro de 2007

Recordando... Violante do Céu

 

QUE SUSPENSÃO, QUE ENLEIO, QUE CUIDADO

 

Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este meu, tirano deus Cupido?
Pois tirando-me enfim todo o sentido
Me deixa o sentimento duplicado.

Absorta no rigor de um duro fado,
Tanto de meus sentidos me divido,
Que tenho só de vida o bem sentido
E tenho já de morte o mal logrado.

Enlevo-me no dano que me ofende,
Suspendo-me na causa de meu pranto
Mas meu mal (ai de mim!) não se suspende.

Ó cesse, cesse, amor, tão raro encanto
Que para quem de ti não se defende
Basta menos rigor, não rigor tanto.

 

Violante do Céu

1602 – 1693

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Sexta-feira, 21 de Setembro de 2007

Recordando... Matilde Rosa Araújo

CAIXINHA DE MÚSICA

 

Grilo, grilarim,

Tens um canto azul

Na noite de cetim!

 

Cigarra, cigarraia,

Tens um canto branco

No dia de cambraia!

 

Formiga, miga, miga,

Só tu cantas os nadas

Do silêncio do Sol,

Das estrelas caladas...                                  

 

 

In "O Livro da Tila"

 

Matilde Rosa Araújo     

N. – 1921

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Segunda-feira, 17 de Setembro de 2007

Recordando... Sophia de Mello Breyner Andersen

 

O POEMA

 

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

 

 

 

In "Livro Sexto" – 1962

 

Sophia de Mello Breyner Andersen

1919 – 2004

 

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Sexta-feira, 14 de Setembro de 2007

Recordando... Teresa Rita Lopes

 

QUANDO TE TINHA

           

Quando te tinha

Mãe

Não sabia

Que um dia

Havia

De te perder

 

Nem pensava

Sequer

Que podia

Não te ter

 

Não parava

Para te saborear

Para te saber

Tão precisa

À minha vida

Tão preciosa

 

Não gozava

A alegria

De te saber

Mãe

Viva

 

IN "Cicatriz" – Ed. Presença – 1996

 

Teresa Rita Lopes

N. 1937

 

 

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Segunda-feira, 10 de Setembro de 2007

Recordando... Maria Cândida Mendonça

 

A MÁSCARA

 

 

Parei

Espreitei

Entrei

Comprei

 

Saí

Subi

Abri

Sorri

 

Peguei

Coloquei

Atei

Ajeitei

 

Desci

Apareci

Rugi

E ri

 

Um leão

Que aflição!

 

Mas não...

É o João!

 

 

In "O Livro do Faz-de-Conta"

 

Maria Cândida Mendonça,

 

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Sexta-feira, 7 de Setembro de 2007

Recordando... Florbela Espanca

 

OS VERSOS QUE TE FIZ

 

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que a minha boca tem pra te dizer!

São talhados em mármore de Paros

Cinzelados por mim pra te oferecer.

 

Têm dolência de veludos caros,

São como sedas pálidas a arder...

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que foram feitos pra te endoidecer!

 

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...

Que a boca da mulher é sempre linda

Se dentro guarda um verso que não diz!

 

Amo-te tanto! E nunca te beijei...

E nesse beijo, Amor, que eu te não dei

Guardo os versos mais lindos que te fiz!

 

 

In "Sonetos – Livro de Soror Saudade" – 1923 

 

Florbela Espanca

1894 – 1930                                  

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Segunda-feira, 3 de Setembro de 2007

Recordando... Agustina Bessa-Luís

 

GARRAS DOS SENTIDOS

 

 

Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos,
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

 

 

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas,
não quero cantar amores.

 

 

Paraísos proibidos,
Contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

 

 

São demências dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

 

 

Dá má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

 

 

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.

 

 

Agustina Bessa-Luís

N. – 1922

 

 

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