Sexta-feira, 31 de Agosto de 2007

Recordando... Almeida Garrett

 

ESTE INFERNO DE AMAR

 

 

Este inferno de amar – como eu amo! –

Quem mo pôs aqui n' alma... quem foi?

Esta chama que alenta e consome,

Que é a vida – e que a vida destrói –

Como é que se veio atear,

Quando – ai quando se há-de ela apagar?

 

 

Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que dantes vivi

Era um sonho talvez... – foi um sonho –

Em que paz tão serena a dormi!

Oh! Que doce era aquele sonhar...

Quem me veio, ai de mim! despertar?

 

 

Só me lembro que um dia formoso

Eu passei... dava o sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei...

 

 

In "Folhas Caídas" – 1853

 

Almeida Garrett

1799 – 1854

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Quarta-feira, 29 de Agosto de 2007

Recordando... António Sardinha

 

A GREI

 

São homens bons e honrados cavaleiros.

São homens de lavoura e dos misteres.

Eles serão na morte os primeiros,

Sempre que tu, ó Pátria, assim quiseres!

 

Irão bater no mar dos cerraceiros,

Irão servir-te aonde tu quiseres!

E passam confrarias. Marinheiros

Passam levando os filhos e as mulheres.

 

Casaram-se os arados com as redes.

O Rei, por entre o povo, é como vedes,

Um português com outros a tratar.

 

Pintor da Grei, eis tudo o que tu pintas!

Nuno Gonçalves, vá, prepara as tintas,

Prepara as tintas, vem daí pintar!

 

 

In «Pequena Casa Lusitana»

 

António Sardinha

1887 – 1925

 

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Segunda-feira, 27 de Agosto de 2007

Recordando... Miguel Torga

 

À FLOR DAS VAGAS

 

Vai a barca do mundo à flor das vagas

No seu mar de tormentas;

Gemem os remadores,

Mordidos pelo beijo de chicote;

E tu, poeta, como um sacerdote,

Da bonança,

A conjurar o mal,

A cantar,

Sem nenhum desespero,

Te desesperar!

Sabe cada ternura a pão azedo

Os acenos são olhos disfarçados;

E os teus versos,

Gratuitos, desfolhados,

Sobre as chagas da vida

Como pensos sagrados

De beleza calmante e condoída!

 

 

Que humanidade tens, irmão?

De onde te vem a força, a decisão

E esse gosto de nunca desertar?

És o Cristo, talvez...

Um Cristo sem altar

Que ficaste a lutar

Junto de nós,

Tão presente, real e natural,

Que podemos ouvir-lhe a própria voz.

 

 

Miguel Torga

1907 – 1995

 

 

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Sexta-feira, 24 de Agosto de 2007

Recordando... João Zorro

 

EM LIXBOA SOBRE LO MAR

 

Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
     ay mia senhor velida!

 

Em Lisboa sobre lo lez
barcas novas mandei fazer,
     ay mia senhor velida!

 

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
     ay mia senhor velida!

 

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
     ay mia senhor velida!

 

João Zorro

Século XIII – XIV

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Quarta-feira, 22 de Agosto de 2007

Recordando... Oliveira Estêvão

 

CONSTRUÇÃO

 

Se o mundo se constrói a pouco e pouco

E a vida se não vive de repente,

O que há no caminho dessa gente

Que se transporta em movimento louco?

 

Fomento, construção: – Eis o cabouco

Que se abre em consciência concorrente

E nos ergue o pilar dum sonho quente,

Que de tanto gritar se fica rouco!

 

Nas fábricas, nos bancos, nas escolas:

O trabalho e o suor não são esmolas

Que se mendiguem lá por caridade.

 

Não. A ganhar o pão de cada dia

Constrói-se um novo mundo de harmonia...

... Que é o desejo de toda a Humanidade!

 

Lisboa

Junho de 1957

 

In "Pedaços da Minha Vida" – Poesias

Edição do Autor – Lisboa – 1971

 

Oliveira Estêvão

 

 

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Segunda-feira, 20 de Agosto de 2007

Recordando... José Régio

EM CIMA DA MINHA MESA

 

Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
 (Eu já me estudo)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!

 

À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora...
Ai minha Nossa Senhora,
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que é ainda mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino...!
No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo, a um canto
Não lhes vá tocar alguém,
(Quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós...)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa...
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós...

Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta...)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!

 

IN "As Encruzilhadas de Deus"

José Régio

1901 – 1969

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Sexta-feira, 17 de Agosto de 2007

Recordando... Eugénio de Andrade

OS AMIGOS

 

Os amigos amei

Despido de ternura

Fadigada;

Uns iam, outros vinham

A nenhum perguntava

Porque partia,

Porque ficava;

Era pouco o que tinha,

Pouco o que dava,

Mas também só queria

Partilhar

A sede da alegria –

Por mais amarga.

 

Eugénio de Andrade

1923 - 2005

 

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Quarta-feira, 15 de Agosto de 2007

Recordando... Carlos Queirós

 

O QUE DIZEMOS

 

 

O que dizemos,

Ninguém dirá

Como dizemos:

Palavra e gesto

Voz e acento

Calor e ritmo,

É tudo ímpar

É tudo novo

É tudo único.

Somos partículas

Inconfundíveis

Da Eternidade.

 

 

IN "Breve Tratado de Não" – Versificação

         

Carlos Queirós

1907 – 1949

 

 

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Segunda-feira, 13 de Agosto de 2007

Recordando... David Mourão Ferreira

 

 

CASTIGO

 

Se ao comermos o pão

não romper nesse pão

a lembrança do trigo

 

se ao bebermos a água

não vibrar a imagem

do minério mais vivo

 

nunca mais… nunca mais

há-de então encontrar-se

o mínimo vestígio

 

nem de trigo, nem de água

nuns lábios… numa face…

num gesto… num sorriso.

 

In "Come e Cala"  Revista nº 12 Ano 1 1981

 

David Mourão Ferreira

1927 – 1996

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Sexta-feira, 10 de Agosto de 2007

Recordando... Pedro Homem de Melo

 

BERÇO

 

Mansa criança brava,
Fui das mais,
Diferente.
Então, tristes, meus pais
Sentiram, certamente,
Em mim, como um castigo!

Noite e dia eu sonhava...
E era sempre comigo!

Depois, fugindo à gente
Eu procurava as flores,
Em todas encontrando
Jeito grácil e brando
De brinquedos e amores...

As violetas sombrias
Dos bosques de Cabanas
Essas, sim! Entendias
E julgava-as humanas!...

 

 

In Livro "Estrela Morta"

 

Pedro Homem de Melo

1904 – 1984

 

 

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