CHUVA DA TARDE
Chuva da tarde, – melodia mansa,
desejos vagos de chorar baixinho...
Voltei aos meus caprichos de criança,
- só quero, Amor, saber do teu carinho!
Chuva da tarde...
Na poeira ardente
cai um frescor inesperado e calmo.
É um frescor que purifica a gente
- como a leitura mística dum Salmo!
Floresçam jasmineiros e açucenas,
- acuda-se à tristeza das raízes!
Que tu, Amor, com tuas mãos pequenas,
as guardes da estiagem e as baptizes!
Meu coração doente remoçou-se,
quando o tocaram essas mãos piedosas...
Chuva da tarde, – enfermaria doce,
onde vão convalescer as rosas!
Chuva da tarde...
Ao longo das varandas
reza mistérios lentos a noitinha.
Que bem não é sonhar em coisas brandas,
nas tuas brandas asas de andorinha!
Deixa que a sombra te emoldure a face,
- eleva no silêncio a tua voz!
O Cântico dos Cânticos renasce,
- diria até que se escreveu p'ra nós!
António Sardinha
1887 – 1925
DIÁLOGO
- «Mãezinha: Se Deus existe
para nossa salvação,
por que tanta gente triste
e tanto pobre sem pão?»
Ela sorriu docemente,
num vago encanto sereno,
e respondeu, firme e crente,
ao seu filhinho pequeno:
- «Deus representa a pureza
da clara sabedoria.
Depois de funda tristeza,
tem mais sabor a alegria!
Deus existe em toda a parte,
porque em toda a parte cabe;
e, porque assim se reparte,
tudo vê e tudo sabe.
Arranca do coração
qualquer semente ruim,
que te leve a dizer não,
quando possas dizer sim.
Guarda Deus dentro de ti,
e nunca mais te apoquentes
com a dúvida que vi
nos teus olhos inocentes.
Pensa apenas, e afinal,
que de Deus tudo provém.»
- «Então porque existe o mal?»
- «Para poder fazer-se o Bem!»
Silva Tavares
ESTE É O TEMPO
Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Sophia de Mello Breyner
1919 – 2004
In Mar Novo (1958)
Amar dentro do peito...
Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia noite na janela:
Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:
Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.
Manuel Maria Barbosa du Bocage
1765 – 1805
RELÓGIO DO TEMPO
não para de girar
e de norte a sul
tudo unido vai ficar.
Dizem que o longe não existe;
já distancia não há,
pois, tudo o que pediste,
aqui mesmo está.
Tic, tac, tic, tac, tic,...
Era o relógio do tempo;
mas, hoje, com um só clic
causamos o movimento.
Uma dor, um sorriso,
agora são globais;
neste mundo interactivo
transforma-se em sinais.
Tudo é planetário...
David Vieira Gonçalves
In "Poesia e Pensamentos"
PRECE
Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.
Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição
Onde era sim, digo não
Onde era não, digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.
Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro de um inimigo.....
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.
Poema escrito a 11/12/1934
Miguel Torga
1907 – 1995
Cântico Negro
"Vem por aqui" – dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos.
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura:
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios!
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê, piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!
José Régio
1901 – 1969
In "Ler Por Gosto"
Barca Bela
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela!
Almeida Garrett
1799 – 1894
AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio Andrade
1923 – 2005
In Antologia Breve, 1972,
5ª Edição, Limiar, 1985
O SONO DO JOÃO
O João dorme... (Ó Maria, Deixa-o dormir, até ser
Dize àquela cotovia Um velhinho... até morrer!
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar...) E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Tem só um palmo de altura Mas sempre, sempre dormindo...
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango Depois, um dia virá
O João seria... um morango! Que (dormindo) passará
Podia engoli-lo um leão Do berço, onde agora dorme,
Quando nasce! As pombas são Para outro, grande, enorme:
Um poucochinho maiores... E as pombas que eram maiores
Mas os astros são menores! Que João... ficarão menores!
O João dorme... Que regalo! Mas para isso, ó Maria
Deixá-lo dormir, deixá-lo! Dize aquela cotovia
Calai-vos, águas do moinho! Que fale mais devagar:
Ó mar! fala mais baixinho... Não vá, o João, acordar...
E tu, mãe! E tu, Maria!
Pede aquela cotovia E os anos irão passando.
Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar... Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
O João dorme, o inocente! Perder a cor que, hoje, tem,
Dorme, dorme eternamente, Perder as cores vermelhas
Teu calmo sono profundo! E for cheiinho de engelhas,
Não acordes para o mundo, Morrerá sem o sentir,
Pode levar-te a maré: Isto é, deixa de dormir:
Tu mal sabes o que isto é... Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...
Ó mãe canta-lhe a canção,
Os versos de teu irmão: Mas para isso, ó Maria!
" Na vida que a dor povoa Pede aquela cotovia
Há só uma coisa boa, Que fale mais devagar:
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir". Não vá, o João, acordar...
António Nobre
1867 – 1900
In Só – 1891
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