DEFESA
Guarda a manhã como uma rosa,
Molha-a, que a noite vem aí.
Dorme tu nos espinhos; goza
O que é próprio de ti.
Não dês flores a ninguém
Que tua mão lhe corte,
E, se puderes,
Leva as mais que puderes à tua morte
Em coroa que te fique bem.
Não gastes o jardim puro
De que tu mesmo és terra:
A tua vida, muro,
Teu coração a encerra.
Rosas façam de sangue os que as desejam;
Cada um se floresça:
As tuas não se vejam
Quando a roseira cresça.
Abre ao lume doído
Os botõezinhos novos.
No ninho despido,
Ave, os teus ovos.
Ao frio e ao escuro cria
Larvas de luz compostas
Do que deita alegria
Sobre as coisas que gostas.
Mas rosas dadas, não:
Nem que tu fosses flores
E raiz teu destino
Engrossando no chão.
As tuas flores
São do menino
Sempre foste. Não!
In “O Bicho Harmonioso”
(1901-1978)
ÀS MÃES DE PORTUGAL
Ó mães doloridas, celestiais,
Misericordiosas,
Ó mães d’olhos benditos, liriais,
Ó mães piedosas
Calai as vossas mágoas, vossas dores!
Longe na crua guerra
Vossos filhos defendem, vencedores,
A nossa linda terra!
E se eles defendem a bandeira
Da terra que adorais,
Onde viram um dia a luz primeira
Ó mães, porque chorais?!
Uma lágrima triste, agora é
Cobardia, fraqueza!
Nos campos de batalha cai de pé
A alma portuguesa!
Pela terra de estrela e tomilhos,
De sol, e de luar;
Deixai ir combater os vossos filhos
Ao longe, heróis do mar!
Dum português bendito, sem igual
Eu sigo o mesmo trilho:
Por cada pedra deste Portugal
Eu arriscava um filho!
Por isso ó mãe doloridas, pelo leito
De morte, onde ajoelhais,
Esmagai vossa dor dentro do peito,
Ó mães não choreis mais!
A Pátria rouba os filhos, mas é mãe
A mãe de todos nós
Direito de a trair não tem ninguém
Ó mães nem sequer vós!
In “Trocando olhares” 1915-1917
Editora Martin Claret
Florbela Espanca
(1894-1930)
TENTAÇÃO
Eu não resistirei à tentação,
não quero que de mim possas perder-te,
que só na fonte fria da razão
renasça a minha sede de beber-te.
Eu não resistirei à tentação
de quanto adivinhei nesta amargura:
um sim que só assalta quem diz não,
um corpo que entrevi na selva escura.
Resistirei a te chamar paixão,
a te perder nos versos, nas palavras:
mas não resistirei à tentação
de te dizer que o céu é o que rasa
a luz que nos teus olhos eu perdi
e que na terra toda não mais vi.
"Os Amantes Obscuros"
In “Poesia reunida (1985-1999)”
Quetzal Editores
Luís Filipe Castro Mendes
(N.1950)
MENINO POVO
O meu Menino Povo de olhos resplandecentes
mora
na choça negra de terra e colmo,
a meio da floresta,
entre a fome
e a noite.
E sua mãe pobre
nada mais tem para lhe dar
que dois grandes seios.
Agora
o piar das aves agoirentas enche a noite
e o Menino treme
de pavor.
Lá fora uivam as alcateias
e a floresta range diabòlicamente.
Parece que a noite
será sempre noite...
Ai se assim fosse!
Mas eu que venho de longe
e sou a clara esperança
trago comigo o canto das calhandras
na alvorada,
e juro ao meu Menino Povo de olhos resplandecentes
que a manhã não tarda,
ela aí vem a caminho por todos os caminhos do mundo,
é breve Dia.
In "Estrada Nova"
Edição do autor
Papiniano Carlos
(1918-2012)
JÁ NINGUÉM SE MATA POR AMOR
Já ninguém se mata por amor,
ninguém segue o rasto de um perfume
durante a vida inteira. Já nem
se aproveitam as guerras para
aquelas paixões impossíveis, fulminantes
as guerras são no ar agora, não
como dantes, quando se ia marchando
de terra em terra. Os homens são
pássaros mortais com armas de
gigantes. Já ninguém se deixa
enlouquecer por uns olhos esculpidos
no retrato, ninguém acorda com
um nome gasto e sempre novo
deposto com doçura sobre os lábios.
São tempos outros de maior usura.
Flores só submetidas a horrorosos
suplícios, vendidas a peso de ouro.
Já ninguém colhe uma rosa
já não há mulher formosa que
componha entre o cabelo, entre
os seios, no decote, uma camélia.
Já não dizem um do outro: o meu
amor. Já só dizem: ele, ela...
In “Poemas de amor e valimento”
Editora Tartaruga
Nuno de Figueiredo
(N.1943)
LIBERDADE
Contigo,
Rebolo na erva dos prados,
Abraçando o sol ao meio dia.
Não importa a língua que falo,
Ou se a noite já baixou.
Canto árias,
Danço tangos e boleros
Pela terra acabada de lavrar.
Enfio-me nas florestas,
E brinco às escondidas com o lobo mau.
Contigo,
Como amoras silvestres,
E sujo a boca no sumo das laranjas.
Monto cavalos de espuma.
Cubro-me de lama
E banho-me em ribeiros cristalinos.
Ando descalça pelos campos de searas,
E peço à chuva que me molhe,
E às estrelas que mudem de lugar.
Contigo,
Galgo montanhas
E sei de cor o nome das nuvens.
Atravesso tempestades e vendavais
E adormeço numa cama de musgo.
Deito-me nua ao luar,
E gozo o frio das geadas.
Contigo,
Acendo fogueiras no deserto,
E toco uma balada para o vento.
Contigo,
Sou um pássaro com asas a crescer.
In “Ao sabor da pele” 2009
Helena Figueiredo
(N.1959)
A SEU PAE
José Vaz de Carvalho
Ouve-me Pae, da minha lyra tímida
ouso as premicias a teus pés depôr,
e leia n´ellas o teu vasto espirito
humilde preito de infinito amor!
C´rôa singella de nevados lyrios,
por mim tecida com suave enleio!
vagas cadencias amorosas, languidas,
que a primavera me verteu no seio!...
Scentelhas soltas d´uma chamma etherea…
mysticos sonhos que eu soletro só…
que são?.. que valem, para o mundo frívolo
todo envolvido em seu doirado pó?
Só tu meu Pae acolherás sollicito
a minha incerta e juvenil canção!
tu, que de amores me doiraste a infância!..
me és premio à lira, e ao mal, se o fiz, perdão!
Oh! se n´um sonho fugitivo, rápido,
vira da gloria a divinal miragem…
se em magas horas de fugaz delírio
me endoidecera essa risonha imagem…
Se o echo ao longe dos aplausos fervidos
désse à minh´alma embriaguez febril,
e se os laureis d´entre inspirados extasis
me florejassem num perpetuo abril!
Sabes o premio que antevira, esplendido!
e a recompensa que eu sonhára então?
fôra em teus lábios um sorrir de jubilo
fôra uma bênção da tua nobre mão!
(mantém a grafia original)
In “Uma Primavera de Mulher”
Maria Amália Vaz de Carvalho
(1847-1921)
PARASITAS
No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento.
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda a gente deu esmola aos tais ciganos;
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos.
Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.
In “A Velhice do Padre Eterno”
Editora Livraria Minerva – Lisboa
Guerra Junqueiro
(1850-1923)
A FLOR DA SOLIDÃO
Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos.
In “Obra Poética I”
Ed. Presença - 1990
Ruy Belo
(1933-1978)
FAZER AMOR É SEMPRE TÃO COMPLEXO
Fazer amor é sempre tão complexo
e tão simples também que às vezes pasmo
dos traumas que alguns têm com o sexo
e dos que não tiveram um orgasmo.
Não sabem o que perdem uns e outros
e o que fazem, enfim, é perder tempo.
Acordam vivos, vivem quase mortos
como troncos sem seiva e sem rebentos.
Ajuda-os, Senhor, nessa agonia,
ajuda-os a pôr a escrita em dia,
que a ponta não lhes ceda nem se mude.
Já que falo contigo, meu Senhor,
ajuda-me hoje à noite no amor
que ontem não fiz mais porque não pude.
In “Sonetos Eróticos & Irónicos & Satíricos & De Amor
& Desamor & De Bem & De Maldizer Do Poeta”
Litexa Editora
Joaquim Pessoa
(N.1948)
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