Segunda-feira, 25 de Dezembro de 2023

Recordando... Manuel Alegre  

NATAL

 

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Era gente a correr pela música acima.

Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

 

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.

Guitarras guitarras. Ou talvez mar.

E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

 

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.

No teu ritmo nos teus ritos.

No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).

Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.

E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.

No teu sol acontecia.

 

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).

Todo o tempo num só tempo: andamento

de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.

Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva

acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva

na cidade agitada pelo vento.

 

Natal Natal (diziam). E acontecia.

Como se fosse na palavra a rosa brava

acontecia. E era Dezembro que floria.

Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.

E era na lava a rosa e a palavra.

Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

 

In “Antologia Poética”

 

Manuel Alegre  

(N.1936)

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Quarta-feira, 1 de Março de 2023

Recordando... Manuel Alegre

NÃO SEI DE AMOR SENÃO

 

Não sei de amor senão o amor perdido

o amor que só se tem de nunca o ter

procuro em cada corpo o nunca tido

e é esse que não pára de doer.

Não sei de amor senão o amor ferido

de tanto te encontrar e te perder.

 

Não sei de amor senão o não ter tido

teu corpo que não cesso de perder

nem de outro modo sei se tem sentido

este amor que só vive de não ter

o teu corpo que é meu porque perdido

não sei de amor senão esse doer.

 

Não sei de amor senão esse perder

teu corpo tão sem ti e nunca tido

para sempre só meu de nunca o ter

teu corpo que me dói no corpo ferido

onde nunca deixou nunca de doer

não sei de amor senão o amor perdido.

 

Não sei de amor senão o sem sentido

deste amor que não morre por morrer

o teu corpo tão nu nunca despido

o teu corpo tão vivo de o perder

neste amor que só é de não ter sido

não sei de amor senão esse não ter.

 

Não sei de amor senão o não haver

amor que dure mais do que o nunca tido.

Há um corpo que não para de doer

só esse é que não morre de tão perdido

só esse é sempre meu de nunca o ser

não sei de amor senão o amor ferido.

 

Não sei de amor senão o tempo ido

em que amor era amor de puro arder

tudo passa mas não o não ter tido

o teu corpo de ser e de não ser

só esse meu por nunca ter ardido

não sei de amor senão esse perder.

 

Cintilante na noite um corpo ferido

só nele de o não ter tido eu hei-de arder

não sei de amor senão amor perdido.

 

In “Livro Do Português Errante”

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

(N.1936)

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Sexta-feira, 25 de Março de 2022

Recordando... Manuel Alegre

NÃO NECESSARIAMENTE UMA PALAVRA

 

Há versos silenciosos ocultos submersos

no sangue no recato no pudor

há versos que quem os sente fica sem saber

se está doente ou tonto e se o melhor

não será disfarçar para que ninguém

repare na mudança

da fala do andar do gesto

ou até do silêncio.

Um poema infiltra-se. Salta por dentro

rompe todos os diques da convenção

ninguém pode conter um poema

mesmo que seja apenas

uma vogal que de repente fica azul

ou uma consoante que desata a rabiar

ninguém pode conter essa toada

esse tremor de terra que sem que se dê por isso

altera subitamente a vida

e acende nas artérias mais obscuras

não necessariamente uma palavra

mas um fogo submerso

uma espécie de pedra cintilante

um fluxo de lava.

 

Ainda que se não saiba é já um verso

algo que bate fundo

como a sílaba cantante

do poema do mundo...

 

In "Doze Naus"

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

(N.1936)

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Terça-feira, 19 de Maio de 2020

Recordando... Manuel Alegre

AS FACAS

 

Quatro letras nos matam quatro facas

que no corpo me gravam o teu nome.

Quatro facas amor com que me matas

sem que eu mate esta sede e esta fome.

 

Este amor é de guerra. (De arma branca).

Amando ataco amando contra-atacas

este amor é de sangue que não estanca.

Quatro letras nos matam quatro facas.

 

Armado estou de amor. E desarmado.

Morro assaltando morro se me assaltas.

E em cada assalto sou assassinado.

 

Quatro letras amor com que me matas.

E as facas ferem mais quando me faltas.

Quatro letras nos matam quatro facas.

 

In “Obra Poética”

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

(N.1936)

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Sábado, 25 de Abril de 2020

Recodando... Manuel Alegre

O CANTO E AS ARMAS

 

Canto as armas e os homens

as pedras os metais

e as mãos que transformando

se transformam. Eu canto

o remo e a foice. Os símbolos.

Meu sangue é uma guitarra

tangida pelo Tempo.

Canto as armas e as mãos.

E as palavras que foram

areias tempestades

minutos. E o amor.

E também a memória

do cravo e da canela.

E também a quentura

de outras mãos: terra e astros.

E também a tristeza

e a festa. O sangue e as lágrimas.

 

O vinho: puro arder.

E também a viagem:

navegação lavoura

indústria – esse combate.

Procurai-me nas armas

no sílex no barro.

Pedra: meu nome é esse.

E escreve-se no vento.

Canto o carvão e as cinzas

as gazelas e os peixes

na fogueira contínua

das cavernas. E a pele

do tigre sobre a pele

do homem. Eis meu rosto:

está gravado na rocha.

Procurai-me no fóssil

e no carvão. Meu rosto

é cinza e Primavera.

Canto as armas e os homens.

Porque a Tribo me disse:

tu guardarás o fogo.

E por armas me deu

o bronze das palavras.

Meu nome é flecha. E perde-se

no pássaro. Começa

meu canto onde começa

a construção. Pastores

do tempo são meus dedos.

 

Caçadores de coisas

impossíveis. Eu canto

os dedos que transformam

e se transformam. Canto

as marítimas mãos

de Magalhães. As mãos

voadoras de Gagárine.

 

Procurai-me no mar

procurai-me no espaço.

Estou no centro da terra.

Meu nome é cinza. E espalha-se

no vento. Sou adubo

fermentação floresta.

E cintilo nas armas

 

Canto as armas e o Tempo.

As minhas armas o

meu tempo. E desarmado

pergunto à flor pergunto

ao vento: vistes lá

o meu país? E o meu

país está nas palavras.

Porque a Tribo me disse:

tu guardarás o fogo.

E por armas me deu

esta espada este canto.

 

In “O Canto e as Armas”  

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

(N.1932)

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Sexta-feira, 25 de Abril de 2014

Recordando... Manuel Alegre

LETRA PARA UM HINO

 

É possível falar sem um nó na garganta.

É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

 

É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

 

É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

 

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre, livre, livre.

 

In “O Canto e as Armas”

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

N. 1936

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Quinta-feira, 25 de Abril de 2013

Recordando... Manuel Alegre

ABRIL DE ABRIL

Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.

In “30 Anos de Poesia”

Publicações  Dom Quixote

 

Manuel Alegre

N.1936

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Sábado, 31 de Março de 2012

Recordando... Manuel Alegre

CANÇÃO TÃO SIMPLES

 

Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passas?

Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?

 

 

In “O Canto e as Armas”

Publicações Dom Quixote

 

 

Manuel Alegre

N. 1936

 

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Segunda-feira, 25 de Abril de 2011

Recordando... Manuel Alegre

ABRIL DE SIM ABRIL DE NÃO

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.


In “30 Anos de Poesia”
Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

N. 1936

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Domingo, 25 de Abril de 2010

Recordando... Manuel Alegre... Poeta Contemporâneo

EXPLICAÇÃO DO PAÍS DE ABRIL

País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.

Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.

Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.

País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.

País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.

Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.

País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.

Mais aprende que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.


In “Praça da Canção”

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

N. 1936



 

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