A NOITE
À altura de todas as estrelas
coloco as mãos para tocar o vento.
A lua é um fascínio que deixa atónito
o meu corpo, e lhe dá um cheiro
de fêmea fecundada ; um fogo posto
a deixar um luar, pleno, detido nos meus olhos.
Passeio-me, longamente,
pelo lado mais insensato das palavras
e digo o nome do último pássaro nocturno,
como se nele repetisse um primeiro adeus,
tão súplice, tão magoado.
Um tango exausto sobe-me pelas pernas.
Há, na minha boca, uma rua silenciosa,
por onde se chega à fragilidade dos lábios.
In “Ortografia do olhar”
Editora Éter
Graça Pires
(N. 1947)
O MAIS IMPORTANTE É SERES FELIZ.
O mais importante é seres feliz.
Disse-mo sempre minha mãe.
As palavras deslizando de seus lábios,
trazidas da mais sábia memória,
que só o coração ousa.
E, mesmo quando falharam
todas as vozes, que anunciavam
um silêncio cativo do medo,
ela mo disse: o mais importante é seres feliz.
O seu olhar sem sombras.
As suas mãos tacteando a luz.
Como se rezasse.
Ou levedasse o pão.
Ou recolhesse inesperadas emoções.
Sem medo de ser expulsa
do meu próprio assombro,
franqueio a alma
a um tempo de sedução
e pernoito num adolescente sossego,
ao abrigo de todos os fantasmas.
In “Reino da Lua”
Editora Escritor - 2002
Graça Pires
(N. 1946)
OS VELHOS
Não é simples envelhecer.
Já um poeta o disse.
Peregrinos do tempo,
aprenderam, pelo olhar,
o caminho do trigo maduro,
o perfil dos navios
que partem sem regresso,
a mudança das estações do ano,
a curta duração das emoções.
Mas, quem se lembra da fadiga
dos seus braços, agora,
que é outono em suas mãos?
Quem fez do banco do jardim
um referente da morte,
o lugar onde a sua solidão se acoita?
Quem esqueceu, nas suas rugas,
a sábia maturidade da vida,
ou antes, um modo diverso
de olhar na direcção da noite?
In “Ortografia do olhar”
Editorial Eter – 1996
Graça Pires
N. 1946
POEMA DE AMOR
Enquanto os meus passos procuram
nos teus a ressonância da alegria
e ambos reconhecemos a luz fascinada
do olhar, dá-me a tua mão.
O nosso caminho não é a tristeza,
nem a raiva, nem o medo.
O rio conhece-nos a voz
porque transportamos no coração
pássaros em chamas e vagueamos lado
a lado, sem tempo, sem idade.
Um desvio de malícia denuncia
a suspeita cumplicidade da brisa
que nos brinca no rosto.
Uma densa névoa lambe,
tumultuada, a pele da noite,
Ao amanhecer, quase inesperadamente,
far-se-à verão em nossas bocas.
O teu nome e o meu nome serão frutos
de esperma e saliva presos à língua.
Os teus olhos : inquietos,
deslumbrados, transparentes.
In “Conjugar Afectos”
Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas – 1997
Graça Pires
N. 1946
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