Quinta-feira, 25 de Abril de 2019

Recordando... David Mourão-Ferreira

CASA

 

Tentei fugir da mancha mais escura

que existe no teu corpo, e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:

era a dor de ficar sem sepultura.

 

Bebi entre os teus flancos a loucura

de não poder viver longe de ti:

és a sombra da casa onde nasci,

és a noite que à noite me procura.

 

Só por dentro de ti há corredores

e em quartos interiores o cheiro a fruta

que veste de frescura a escuridão.

 

Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti a noite escuta

o que sem voz me sai do coração.

 

In “Obra Poética,1948-1988”

Editorial Presença

 

David Mourão-Ferreira

(1927-1996)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sábado, 13 de Maio de 2017

Recordando... David Mourão-Ferreira

TERNURA

 

Desvio dos teus ombros o lençol,

que é feito de ternura amarrotada,

da frescura que vem depois do sol,

quando depois do sol não vem mais nada...

 

Olho a roupa no chão: que tempestade!

Há restos de ternura pelo meio,

como vultos perdidos na cidade

nde uma tempestade sobreveio...

 

Começas a vestir-te, lentamente,

e é ternura também que vou vestindo,

para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo...

 

Mas ninguém sonha a pressa com que nós

a despimos assim que estamos sós!

 

In "Infinito Pessoal"

Guimarães Editores

 

David Mourão-Ferreira

(1927-1996)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Sábado, 7 de Janeiro de 2017

Recordando... David Mourão-Ferreira

E POR VEZES

 

E, por vezes, as noites duram meses

E, por vezes, os meses oceanos

E, por vezes, os braços que apertamos

Nunca mais são os mesmos. E, por vezes,

 

Encontramos de nós em poucos meses

O que a noite nos fez em muitos anos

E, por vezes, fingimos que lembramos

E, por vezes, lembramos que, por vezes

 

Ao tomarmos o gosto aos oceanos

Só o sarro das noites, não dos meses

Lá no fundo dos copos encontramos

 

E, por vezes, sorrimos ou choramos

E, por vezes, por vezes, ah! Por vezes,

num segundo se evolam tantos anos.

 

In “Matura Idade”

Editora Arcádia

 

David Mourão-Ferreira

(1927-1996)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Segunda-feira, 31 de Agosto de 2015

Recordando... David Mourão-Ferreira

PRESÍDIO

 

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.

Que dizer do pescoço, às vezes mármore,

às vezes linho, lago, tronco de árvore,

nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

 

E o ventre, inconsistente como o lodo?...

E o morno gradeamento dos teus braços?

Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:

é também água, terra, vento, fogo...

 

É sobretudo sombra à despedida;

onda de pedra em cada reencontro;

no parque da memóra o fugidio

 

vulto da Primavera em pleno Outono...

Nem só de carne é feito este presídio,

pois no teu corpo existe o mundo todo!

 

In "Eros de Passagem, Poesia Erótica Contemporânea",

Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade,

Ed. Campo das Letras - 1997

 

David Mourão-Ferreira

(1927 - 1996)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013

Recordando... David Mourão-Ferreira

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

 

In "Cancioneiro de Natal”

Verbo Editora

 

David Mourão-Ferreira

1927 – 1996

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Domingo, 13 de Maio de 2012

Recordando... David Mourão-Ferreira

POESIA DE AMOR

 

Vieram as aves negras em teu nome,

Secas folhas de plátano e de tília...

Amargamente, a fonte segredou-me

Tudo quanto eu sabia

Da sorte de Marília;

E que Dirceu

Poderei ser eu

- Tão infeliz! - nesta prisão sombria.

 

Ausente embora, continuo

A endereçar-te mil endechas.

Não sei mais nada: sei amor. Assim destruiu,

Pela canção doentia

Coloração das minhas queixas.

Bárbara escrava?

Que me importava?

Além do amor, o meu amor quer melodia.

 

Cantei às flores do pinho, verde e vivo;

Cantei nas margens verdes das ribeiras.

- Quando hás-de ver que foste só motivo

Para falsas canções tão verdadeiras?

 

 

In “Tempestade de Verão”

Guimarães Editores

 

David Mourão-Ferreira

1927 – 1996

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 25 de Dezembro de 2011

Recordando... David Mourão-Ferreira

NATAL, E NÃO DEZEMBRO

 

Entremos, apressados, friorentos,

Numa gruta, no bojo de um navio,

Num presépio, num prédio, num presídio,

No prédio que amanhã for demolido...

Entremos, inseguros, mas entremos.

Entremos, e depressa, em qualquer sítio,

Porque esta noite chama-se Dezembro,

Porque sofremos, porque temos frio.

 

Entremos, dois a dois: somos duzentos,

Duzentos mil, doze milhões de nada.

Procuremos o rastro de uma casa,

A cave, a gruta, o sulco de uma nave...

Entremos, despojados, mas entremos.

De mãos dadas talvez o fogo nasça,

Talvez seja Natal e não Dezembro,

Talvez universal a consoada.    

 

 

In “Cancioneiro do Natal”

(Prémio Nacional de Poesia – 1971)

Edições Rolim – 1986

 

David Mourão-Ferreira

1927 – 1996

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quinta-feira, 7 de Abril de 2011

Recordando... David Mourão-Ferreira

CANÇÃO AMARGA

 

Que importa o gesto não ser bem

o gesto grácil que terias?

– Importa amar, sem ver a quem...

Ser mau ou bom, conforme os dias.

 

Agora, tu só entrevista,

quantas imagens me trouxeste!

Mas é preciso que eu resista

e não acorde um sonho agreste.

 

Que passes tu! Por mim, bem sei

que hei-de aceitar o que vier,

pois tarde ou cedo deverei

de sonho e pasmo apodrecer.

 

Que importa o gesto não ser bem

o gesto grácil que terias?

– Importa amar, sem ver a quem...

Ser infeliz, todos os dias!

 

 

In "A Secreta Viagem"

Edições Távola Redonda

 

David Mourão-Ferreira 

1927 – 1996                                      

 

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (2) | favorito
Quarta-feira, 1 de Setembro de 2010

Recordando... David Mourão-Ferreira

PRAIA DO ENCONTRO

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.


In "Tempestade de Verão" – Obra Poética

Editorial Presença

 

David Mourão-Ferreira

1927 – 1996

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mourã...

. Recordando... David Mour...

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds