Era a primeira vez que nus os nossos corpos
apesar da penumbra à vontade se olhavam
Surpresos de saber que tinham tantos olhos
que podiam ser luz de tantos candelabros
Era a primeira vez cerrados os estores
só rumor do mar permanecera em casa
E sabias a sal, e cheiravas a limos
que tivessem ouvido o canto das cigarras
Havia mais que céu no céu do teu sorriso
madrugava de tudo em tudo que sonhavas
Em teus braços tocar era tocar os ramos
que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo
É preciso afinal chegar aos cinquenta anos
para se ver aos vinte é que se teve tudo.
In “O Algarve em Poemas”
Edições ASA
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
LITANIA PARA ESTE NATAL (1967)
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Numa casa de Hanói ontem bombardeada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
E anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Para nos vir pedir contas do nosso tempo
In “Lira de Bolso”
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
RELÓGIO DO TEMPO
não para de girar
e de norte a sul
tudo unido vai ficar.
Dizem que o longe não existe;
já distancia não há,
pois, tudo o que pediste,
aqui mesmo está.
Tic, tac, tic, tac, tic,...
Era o relógio do tempo;
mas, hoje, com um só clic
causamos o movimento.
Uma dor, um sorriso,
agora são globais;
neste mundo interactivo
transforma-se em sinais.
Tudo é planetário...
David Vieira Gonçalves
In "Poesia e Pensamentos"
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