DESPEDIDA
À memória do Sebastião da Gama
Feridas por mistério, emudeceram
todas as vozes, quando se quebrou
a amarra de navio que te prendia.
À beira cais alaram-se gaivotas
e o nevoeiro, após, tudo envolveu.
«Que é de ti, meu amor?» – e os olhos dela
repetiam, brilhando: «Que é de ti?».
No sorriso sem fim da tua boca
a memória do amor existiria?
Quase a teus pés choravam duas velas,
exaustas, já desfeitas, desoladas...
E as tuas mãos, longínquas e cruzadas.
extinguiam-se com elas.
Fevereiro de 52.
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
2.° Fascículo - Inverno ele 1951-52
Pág. 90
António Luís Moita
(1925-2013)
CONCEITO PEQUENINO
A tudo se empresta aroma.
De tudo aroma se extrai.
O trigo que o homem sonha
Precede, vivo, o trigal.
Nasce o trigo e cresce o pão
Que no sonho se transforma.
Só com raízes no chão
Tem asas livres o homem.
In “Cidade Sem Tempo”
Lisboa – 1985 – Edição do Autor
António Luís Moita
(1925-2013)
EXÍLIO
Moramos a milhões de versos-luz
da mais próxima estrela. Que buscamos
na carne provisória que nos damos
senão este pavor dos ossos nus?
Entre rápidas rosas que anoitecem
e pássaros que tombam e navios
que em vão lançam as âncoras nos rios
e vão morrer no mar a que pertencem,
erguemos pontes, deuses, mitos, casas,
um verso que nem perto se decora.
– Quem nos deu sonho e asas
calou-se. Foi-se embora.
In “Cidade Sem Tempo”
Edição do Autor – 1985
António Luís Moita
N. 1925
FÓSSIL
As arestas da pedra são redondas
na mão desprevenida que as recebe
evaporadas, gastas pelas ondas
milenárias da praia que amanhece.
Mas são arestas quando, além da polpa
dos dedos mornos, outros dedos frios
aram na pedra o que na pedra é sombra,
numa cadência grave de navios.
Que mar antigo se dilata dentro
do fóssil mudo que já foi bivalve
e surge, aos olhos, coração cinzento,
sedento de uma nova humanidade?
Oiço-lhe o longo, longo chamamento...
– E, de repente, a pedra liquefaz-se.
In “Cidade Sem Tempo”
Edição do Autor – Lisboa – 1985
António Luís Moita
N. 1925
ACODE A NOITE…
Acode a noite, o dia se apagando.
A cidade impõe-se a outra face.
0 mistério, agora, é lírico e é brando.
Se a mão lhe toca, abre-se.
É noite funda. Dos bas-fonds diversos
o som que vinha, lúbrico, morreu…
– É Deus que assiste a dor de fazer versos.
Foi a minh’alma que se mereceu.
In “As Folhas de Poesia Távola Redonda"
Fundação Calouste Gulbenkian
Boletim Cultural – Série VI – n.º 11 – Outubro de 1988
António Luís Moita
N. 1925
TUMULAR
Uma laje cinzenta nos separa
e dois metros de terra.
Tu, aí, és a paz.
Eu, aqui, sou a guerra.
Trago-te cravos, simples cravos brancos.
Cravos mais leves do que uma oração.
Sem a mácula seca das palavras
desfiadas em vão.
Sobre a laje os deponho, os distribuo
ao longo do que, certo, já não és:
ali, teus olhos líquidos e fundos;
aqui teu coração; além, teus pés.
Recolho então as flores decapitadas.
Amarro-as ao meu peito, a tudo o que vivi,
e regresso contigo à cidade habitada.
Tu, aí, és a paz: não precisas de nada.
Eu, aqui, sou a guerra: e preciso de ti.
In “Cidade Sem Tempo”
Edição do Autor – Lisboa – 1985
António Luís Moita
N. 1925
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