ANJOS CAÍDOS
Neste palco de sol,
de repente:
os teus lábios:
anjos caídos mas abençoando
Cada curva e tremura
dentro do nervo exacto
da memória
Por esses lábios
eu faria tudo:
rasgava-me de sangue
e inocência,
partia com as mãos vitrais
e estrelas,
desintegrava o sol
Já não anjos caídos
os teus lábios,
mas deuses transportados
pelos meus
In “Imagias”
Gótica Editora
Ana Luísa Amaral
(1965-2022)
TENTO EMPURRAR-TE DE CIMA DO POEMA
Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.
Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?
E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?
Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
In “Coisas de Partir”
Fora do Texto
Ana Luísa Amaral
(N.1956)
ANIVERSÁRIO
Será comovedor os quatro anos
e a festa colorida
as velas mal sopradas entre um rissol
no chão e os parabéns:
quatro anos de vida.
Serão comovedores os sumos de
laranja concentrados (proporções
por defeito) e os gostos tão
diversos, o bolo de ananás,
os pés inchados.
Será soberbamente comovente
toda a gente cantando,
o mau comportamento dos adultos
conversas-gelatinas e os anos
só pretexto.
Mas eu gostei. E contra mim gostei
mesmo no resto:
este prazer pequeno do silêncio
um sapato apertando descalçado
guardanapo e rissol por arrumar
no chão e um copo
olhando o nada
em restos de champanhe
(Minha Senhora de Quê)
In “Inversos – Poesias 1990 – 2010”
Publicações Dom Quixote
Ana Luísa Amaral
(N. 1956)
MÚSICAS
Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.
Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.
Bartók em relação ao resto.
A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.
Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.
In “Minha Senhora De Quê “
Editora Quetzal – 1999
Ana Luísa Amaral
N. 1956
ENCENAÇÕES E QUASE VOOS
Uma luz construída
ilumina
esses santos,
cada um sem o halo,
mas pombo circundante
na cabeça
São quatro santos no cimo
da igreja,
e cada um dos pombos escolheu
a face mais marcada,
os caracóis de pedra
que fossem mais macios
Talvez não sejam santos,
mas apóstolos, tão de barroco,
e o seu gosto a vestir:
um excesso de desvio
quase pecado
Apóstolos ou santos,
os pombos circundantes na cabeça
são halos delicados
que, julgando-se em céu,
vêem quase metade da cidade,
a meio: o rio e os telhados
de casas
Fingindo-se de mão a abençoar,
são adereço de um teatro
inteiro:
caos encenado
ou um perfil egípcio
E os caracóis solenes e sombrios
convidam ao pecado
e convocam-me aqui: noite de verão,
a liquidez do olhar:
Eu não poder,
em pedra,
abrir as asas
In “Se Fosse Um Intervalo”
Edições Dom Quixote
Ana Luísa Amaral
N. 1956
UM CÉU E NADA MAIS
Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais -que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
In “Às Vezes o Paraíso”
Quetzal Editores – Lisboa – 1998
Ana Luísa Amaral
N. 1956
UM CÉU E NADA MAIS
Um céu e nada mais – que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
In “Às Vezes o Paraíso”
Quetzal Editores
Ana Luísa Amaral
N. 1956
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