O FIM DA NOITE
A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.
Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.
Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.
E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.
In “Poesias Completas”
Editora Portugália
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
ACTO DE CONTRIÇÃO
Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei
– por tudo, vida, perdão!
In “Poesias Completas - 1969”
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
FADO
Música triste
desenganado
canto nocturno
a pouco e pouco
vai penetrando
meu coração
Nocturna prece
ou pesadelo
não sei que sombra
aquele canto
em mim deixou.
Febre ou cansaço?
Não sei! Nem quero.
Lúgubre pranto
de roucas vozes
não tem beleza
– só emoção.
É como um eco
de noites mortas
de vidas gastas
ao deus dará.
Mas eu o recebo
dentro de mim.
Entendo. Choro.
Eu o recebo
Como um irmão.
In "Heras e Eras"
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
REALIDADE
A realidade é apenas
uma luz por dentro das coisas. Teia
em que se enreda o olhar que traz
dentro de si o amor do mundo.
Vaso que dá forma à
toalha líquida dos instantes. Suspensa
ponte sobre as margens do tempo.
Baste ao amor a adivinhação, ao sorriso
a presença de um sonho.
A luz floresce em qualquer parte.
In "Heras e Eras"
Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
AURORA
A poesia não é voz — é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
voo sem pássaro dentro.
"Voo sem pássaro dentro"
In “Poesias Completas”
INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda
Adolfo Casais Monteiro
1908 – 1972
VEM VENTO, VARRE
Vem vento, varre
sonhos e mortos.
Vem vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só covardia.
Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.
Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.
Vem vento, varre!
In “Noite Aberta Aos Quatro Ventos – Líricas Portuguesas”
Portugália Editora
Adolfo Casais Monteiro
1908 – 1972
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