Domingo, 30 de Novembro de 2014

Recordando... Emanuel Félix

AS RAPARIGAS LÁ DE CASA

 

Como eu amei as raparigas lá de casa

 

discretas fabricantes da penumbra

guardavam o meu sono como se guardassem

o meu sonho

repetiam comigo as primeiras palavras

como se repetissem os meus versos

povoavam o silêncio da casa

anulando o chão os pés as portas por onde

saíam

deixando sempre um rastro de hortelã

traziam a manhã

cada manhã

o cheiro do pão fresco da humidade da terra

do leite acabado de ordenhar

 

(se voltassem a passar todas juntas agora

veríeis como ficava no ar o odor doce e materno

das manadas quando passam)

aproximavam-se as raparigas lá de casa

e eu escutava a inquieta maresia

dos seus corpos

umas vezes duros e frios como seixos

outras vezes tépidos como o interior dos frutos

no outono

penteavam-me

e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas

na primavera

 

não me lembro da cor dos olhos quando olhava

os olhos das raparigas lá de casa

mas sei que era neles que se acendia

o sol

ou se agitava a superfície dos lagos

do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas

as raparigas lá de casa

que tinham namorados e com eles

traíam

a nossa indefinível cumplicidade

 

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo

às raparigas lá de casa

porque sabia e sei que apenas o faziam

por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade

o vício da virtude da sua imensa ternura

da ternura inefável do meu primeiro amor

do meu amor pelas raparigas lá de casa

 

Habitação das Chuvas          

 

In “121 Poemas Escolhidos”

Editor Salamandra

 

Emanuel Félix

1936 – 2004

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Terça-feira, 25 de Novembro de 2014

Recordando... António Sardinha

SONETO DA CONQUISTA

 

Ó grandes cavaleiros afonsinos,

bailando no terreiro da capela,

deixai moças da Maia e verdes pinos,

que é tempo agora de saltar p'ra sela!

 

E rompe a galopada ao som dos sinos,

– e galga matagais que a morte gela…

Os que tornarem, graves peregrinos,

irão depois em voto a Compostela.

 

"Por Santiago!" – E a terra se dilata.

O Tejo na distancia é como prata,

a cuja orla a hoste se detem.

 

Brilha o sinal de Christo sobre os peitos.

E os cavaleiros, sempre insatisfeitos,

voltam scismando no que está p'ra além…

 

In “Contemporanea”

Director – José Pacheco

Redactor Principal – Oliveira Mouta

Editor – Agostinho Fernandes

Ano I – Volume II – Nº.6 - Ano 1922

Pág. 133

 

António Sardinha

1887 – 1925

 

Mantém a grafia original

 

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Quarta-feira, 19 de Novembro de 2014

Recordando... Casimiro de Brito

DO POEMA

 

O problema não é

meter o mundo no poema; alimentá-lo

de luz, planetas, vegetação. Nem

tão-pouco

enriquecê-lo, ornamentá-lo

com palavras delicadas, abertas

ao amor e à morte, ao sol, ao vício,

aos corpos nus dos amantes –

 

o problema é torná-lo habitável, indispensável

a quem seja mais pobre, a quem esteja

mais só

do que as palavras

acompanhadas

no poema.

 

In “Ode & Ceia” – Poesia 1955-1984

Publicações Dom Quixote – 1985 

Casimiro de Brito

N. 1938

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Quinta-feira, 13 de Novembro de 2014

Recordando... Luís Adriano Carlos

PLÁGIO PARA AMADORES

 

Diz-me de amor ardente se não ver,

metáfora que em verso meu somente

me traz de novo a ferida mais contente

e a dor que desatina sem doer.

Teu querer é metonímia de quem quer

a si se convencer do que já sente,

abrir e reabrir constantemente

o verbo que se perde em querer saber.

Persegues vencedora o invencível,

e partes minha vida em duas partes:

nenhuma me pertence e o impossível

reparte-se por ti com tantas artes

que nada se assemelha a tal desnível

de amar essa loucura, os baluartes.

 

Amor é água ardente enquanto arde.

 

In “Livro de Receitas”

Campo de Letras – 2000

 

Luís Adriano Carlos

N. 1959

 

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Sexta-feira, 7 de Novembro de 2014

Recordando... Manuel Ribeiro

A MÃE

 

I

 

Sua ternura:

 

Com que alvoroço trémulo e espectante

chega a maternidade um dia, – como

da simples flôr se desentranha o gomo

a um raio de sol mais perturbador.

 

Vão-se os flancos erguendo na ondeante

vida que irrompe altiva, num assomo.

O seio branco amadurece em pomo

que o filho, ancioso, já não está distante.

 

No futuro que a Mãe lhe vai a erguer

a terra é pouca já p’ra êle ver

e pequeno o universo p’ra sonhar.

 

Mas, ei-lo enfim que chega... E a terra e o espaço

se circunscrevem no minguado abraço

em que os seus labios se unem p’ra o beijar...

 

II

 

Sua bondade:

 

Um filho vem, mais um e outro ainda.

Fonte da vida, a vida corre enquanto

do seu amor jorrar, em flúido, o encanto

que aos olhos d’outro amor a torna linda.

 

Cada vida que vem ao mundo em pranto

é p’ra o seu amplo coração bem vinda.

E já não sabe (se esse amar é tanto!)

onde o filho começa e onde a mãe finda.

 

E como em roda o azul do ceo pendente

se curva e pousa em terra e pensa a gente

que êle está perto – e é a Imensidade,

 

assim a alma da Mãe – ilimitada,

abraça o filho, mas, aperfilhada,

passa no lento abraço – a Humanidade.

 

In Revista “ÁMANHÔ

(Revista popular de orientação racional)

I Série – Nº 1 – 1 de Junho de 1909 – Pág. 10

Directôres – Grácio Ramos & Pinto Quartim

 

Manuel Ribeiro

1879 – 1941

 

Mantém a grafia original

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Sábado, 1 de Novembro de 2014

Recordando... Maria do Rosário Pedreira

MÃE, EU QUERO IR-ME EMBORA

 

Mãe, eu quero ir-me embora - a vida não é nada

daquilo que disseste quando os meus seios começaram

a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,

murcharam tão depressa as rosas que me deram –

se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu

deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

 

Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão

cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,

só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais

que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos

os sonhos que tiveste para mim - tenho a casa vazia,

deitei-me com mais homens do que aqueles que amei

e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

 

Mãe, eu quero ir-me embora - nenhum sorriso abre

caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.

Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez

não chames pelo meu nome, não me peças que fique –

as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-m

embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue

de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como

uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

 

Mãe, eu vou-me embora - esperei a vida inteira por quem

nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta

hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas

essa voz, tu sabes, não é a tua - a última canção sobre

o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias

foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão

tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam

virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

 

In 'O Canto do Vento nos Ciprestes'

Editora Gótica

 

Maria do Rosário Pedreira

N.1959

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