UMA SÓ VIDA NÃO CHEGA
Uma só vida não chega
nem outra nem outra ainda
para dizer que te amo
meu amor meu só amor.
E quando a morte vier
inevitável e certa
que seja eu o primeiro
a ficar no livro inscrito.
Que ali discreto seja
e feliz por ter amado
a mulher por que morri
vivendo. Nada mais quero.
Se de seu amor morri
morrendo volto a viver.
In “Sequências”
Livros Horizonte
Álvaro Neto **
N.1935
** Pseudónimo de Liberto Cruz
AUTOBIOGRAFIA
Algumas poucas tabernas, velho armário,
cão de folhas,
árvores do escuro ladram,
eu corro pelas páginas no focinho do cão.
A garrafa. O gin gira
e fere-me lábios e aviva o vinho velho.
Velho vidro. Espalha o espelho (as palavras
no charco do álcool).
Nunca o coração bebe,
a árvore ondulante bebe,
o coração obscuro vive a violência
do meu ponto de vista,
mas habita-me
na confissão
se os cães da retórica velhos
correm contra a pele,
quando as lágrimas os soltam
e as páginas inesperadamente se derramam.
E o meu armário fala, fantasma arborescente.
Em vez de um lírio, as minhas fezes na boca,
a espuma da copa. Álcool.
É o mar.
Choro assombrado.
In “Vida Quotidiana e Arte Menor “ – 1993
Editora Gota de Água
José Emílio-Nelson **
N. 1948
** Pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e Silva,
EU SOU PORTUGUÊS AQUI
Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.
Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento.
Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.
Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar dum marinheiro.
Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota
do acaso
campeão do improviso,
trago as mão sujas do sangue
que empapa a terra que piso.
Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho,
do alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
do gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.
Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.
Nasci
aqui
ao pé do mar
duma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.
Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.
In “Eu sou português aqui”
Obras de José Fanha nº 1
Editora Ulmeiro
José Fanha
N. 1951
MOTE
Fui uma noite pintar
Com um caneco emprestado;
Eu pintei sem reparar,
Pintei e fiquei pintado.
GLOSAS
Eu comecei com jeitinho
A compor o ramalhete;
Primeiro foi com azeite
E depois foi com cuspinho.
No começo era estreitinho,
Custava o pincel a entrar...
Começa a dona a gritar:
"Não me parta a tigelinha",
Mas que coisa engraçadinha,
Fui uma noite pintar...
Comecei devagarinho...
Quando fui ao outro mundo
Meti o pincel ao fundo
E parti o canequinho.
Até mesmo o pincelinho
Veio de lá todo pintado,
Eu já estava desmaiado,
Perdendo as cores do rosto;
Mas pintei com muito gosto
Com um caneco emprestado.
Vem a mãe toda zangada:
"Tem que pagar-me a vasilha...
No caneco da minha filha
Não pinta você mais nada...
... Lá isto, a moça deitada,
Sem poder levantar-se,
Com tanta tinta a pingar
No lugar da rachadela!..."
"Diga lá, que desculpe ela,
Eu pintei sem reparar!"...
Pra que vejam que sou pintor
E meu pincel nunca deixo;
Pra que saibam que o Aleixo
Não é somente cantor...
Também pinto qualquer flor
E faço qualquer bordado;
Mas aqui o ano passado,
Perdi, de pintar, o tino...
Fui pintar, fiz um menino,
Pintei e fiquei pintado.
In "Este Livro que Vos Deixo..." – Inéditos
Volume II – 3ª edição
Editorial Notícias
António Aleixo
1899 – 1949
AMOR, É UM ARDER, QUE SE NÃO SENTE
Amor, é um arder, que se não sente;
É ferida que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.
É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
E frágua, que devora o fogo ardente.
É um triste penar entre lamentos;
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.
É suspiros lançar de quando, em quando;
E quem me causa eternos sentimentos;
É quem me mata, e vida me está dando.
In "366 Poemas Que Falam de Amor"
Antologia organizada por Vasco Graça Moura,
Editora Quetzal
Paulino António Cabral
(Abade de Jazente)
1719 – 1789
POEMA CONTRA A CIDADE
Aqui na cidade nossos dedos não acabam gestos
E a incauta presença nos suga
O esforçado mel de todos os dias.
São inúteis todos os rios de resina,
Todas as amoras maduras
Que pisámos, bravas,
No intervalo das estações.
As primeiras chuvas são apenas
Primeiras chuvas
E as crianças brincando são apenas
Crianças brincando.
Punhais de duas lâminas nos correm nas veias
E cavalos selvagens penetram
Em nosso corpo, até à raiz dos ossos.
Falsos, caminhamos, esmagados os olhos
Pela indiferença das árvores,
Pelo silêncio dos cisnes.
Aqui na cidade, talvez tudo seja o contrário,
Do que digo, do que escrevo,
Mas a amada perde-se em florestas de ar puro
E meus dedos não acabam gestos,
Não conseguem a calma da sua presença.
In “Poesia Reunida (1956 – 2011)”
Editora Palimage
Liberto Cruz
N. 1935
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