Quarta-feira, 29 de Setembro de 2010

Recordando... Rui Cóias

NÃO É DIFÍCIL UM HOMEM APAIXONAR-SE

 

 

Não é difícil um homem apaixonar-se.
Ferir a sua paisagem,
cinzas de um passado caído, fluente.
Ao fim de vidas partilhadas pode ser que
diga « estremeci
durante anos sem te abraçar ». Agora é tarde.
Agora é tarde sobre a terra cercada.
Por planícies ficou o desespero,
a dor lilás dos homens soçobrados
na paciência nocturna.
Só depois do terror os cães ladram fielmente
aos portais da manhã, só
após o gume das vidas partilhadas.
« Passei a vida a fugir para a tua boca », e
confundo já o teu rosto
com um qualquer.

 

 

In “A Função do Geógrafo”
Quasi Edições

 

Rui Cóias

N. 1966

 

 

 

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Sábado, 25 de Setembro de 2010

Recordando... Eduíno de Jesus

POEMA DO AMOR DESESPERADO

 

Espera um pouco (até que o amor de todo nos destrua!)
Amanhã, amanhã é que esta história há-de ser contada.
Então, da nossa vida e amores, não haverá mais nada
Do que um fantasma branco balouçando à lua.


Mas é agora que tudo é verdadeiro. Amanhã, quando
Não houver de nós ambos nem o nome escrito
Em letras de pedra numa pedra num canto do mundo,
Nina, quem saberá o que foi o nosso amor profundo?
O nosso amor maldito?
O nosso amor tão grande?


É preciso, é preciso dar notícia aos grandes profetas do futuro!
(Não vão depois dizer que o nosso amor era pecado...)
Não havia nenhum muro, e para trazer calado
O mundo,  é que os dois, a pedra e lágrimas, levantámos a
                      [enorme e intransponível sombra deste muro!

 

 

 

In «O Futuro em Anos-Luz»
Antologia de Poesia Portuguesa
Sel.e org. Valter Hugo Mãe
Edições Quasi

 

Eduíno de Jesus

N. 1928

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Terça-feira, 21 de Setembro de 2010

Recordando... Pedro Homem de Mello

MIRAGAIA

 

Aqui, onde esta noite nunca cessa,
Foi Miragaia a minha Madragoa.
Aqui, em frente ao rio, oiço a promessa
Do mar que ajoelha, enquanto me atordoa.

Aqui, sei onde sangra o lábio oculto.
De quem me vê, até de olhos fechados!
E, como os cegos, reconheço um vulto,
Pelo roçar dos dedos namorados...

Deviam chamar Pedro, em vez de Porto,
Ao burgo, se é tal qual do meu tamanho!
Aqui

Nasci,
Porém nasci já morto,
Imóvel, surdo, triste, mudo, estranho...

Deu-me Deus ele, apenas, por amigo.
Deitamo-nos, cismando, lado a lado...

Seu corpo, rijo e nu, dorme comigo.
Mas fico, entre os seus braços, acordado!


In “Poesias Escolhidas”

Imprensa Nacional – Casa da Moeda

 

Pedro Homem de Mello

1904 – 1984

 

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Sexta-feira, 17 de Setembro de 2010

Recordando... Glória de Sant'Anna

POEMA DOS JOVENS CONSCIENTES

 

Nós somos o que esperamos

todos ainda iguais aos mortos recentes

mas cobertos das cicatrizes

colhidas na seiva dos ramos molhados de sangue

na alta lua esgarçada das vigílias

no último eco mortífero e vibrante

 

Nossos cabelos rescendem à cinza que pulsa no vento

há um claro travo de sal em nossa boca

e trazemos nos olhos

a transparência das manhas tintas de medo

 

Sabemos

como vibra uma lança de dentro do tempo

a crescente medida dos gumes cintilantes

e o peso

das granadas soltas dos longos dedos tépidos

e desdobradas ao limite do inferno

 

Nós somos o que esperamos

todos ainda iguais aos mortos recentes

ultrapassar os trilhos calcinados

em filas densas ombro a ombro de mãos nuas

através do puro silêncio dos horizontes magoados

 

(sonhando trigo verde que toque a nossa face)

 

em busca da palavra

que purifique o sal dos nossos lábios

 

 

Cabo Delgado – Pemba – 1970

 

 

 

In “Revista Colóquio/Letras” – Poemas  

N.º 36  de Março.1977

Fundação Calouste Gulbenkian

 

 

Glória de Sant'Anna

1925 – 2009  

 

 

 

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Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

Recordando... Joaquim Namorado

CANTAR DE AMIGO

 

Eu e tu: milhões!…

 

Entre nós – perto ou longe!

– entre nós rios e mares

montanhas e cordilheiras…

 

Eu e tu perdidos

nesta distância sem fim do desconhecido.

 

Eu e tu  unidos

para além das cordilheiras

por sobre mares de diferença

na comunhão de nossos destinos confundidos

– a minha e a tua vida

correndo para a confluência

num mesmo Norte.

 

Eu e tu amassados

nesta angústia que é de nós,

minha e tua,

e mais do que de nós…

 

Eu e tu

carne do mesmo corpo

amor do mesmo amor

sangue do mesmo sacrifício!

 

Eu e tu

elos da mesma cadeia

grãos da mesma seara

pedras da mesma muralha!

 

Eu e tu, que não sei quem és.

Que não sabes quem sou:

 

– Eu e tu: Amigo! Milhões…

 

 

In “Antologia de Poetas Alentejanos”

Edição da C. M. de Vila Viçosa

 

Joaquim Namorado

1914 – 1986

 

 

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Quinta-feira, 9 de Setembro de 2010

Recordando... Fernando Echevarria

INTERIOR

Os espelhos estudam pelo inverno
o brilho do seu timbre envelhecido.
Auscultam nimbos últimos. No intento
de sugerirem cantos, quando os vidros

ângulos abrem fundos ao silêncio
e o crescimento dum lugar antigo.
A luz, depois, recolhe-se ao momento
de estar ensimesmando os tempos idos.

Que, frágeis, fulgem, quase nem reflexos
de um mundo sonolento de vestígios.
Depois ainda, a superfície um vento

esculpe. Efígies e apagados signos
adormecem em paz. Enquanto o espelho
atento guarda a escuridão do sítio.

 

 

In “Uso de Penumbra” – 1995

Colecção Poesia  

Edições Afrontamento

 

Fernando Echevarría

N. 1929



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Domingo, 5 de Setembro de 2010

Recordando... Mário Saa

XÁCARA DAS MULHERES AMADAS

 

Quem muitas mulheres tiver,
em vez duma amada esposa,
mais se afirma e se repousa
pera amar sua mulher;
quem isto não entender…
em cousas d’amor não ousa,
em cousas d’amor não quer!

Quantas mais, mais se descansa,
mais a gente serve a todas;
quantas mais forem as bodas,
quantos mais os pares da dança,
menos a dança nos cansa
o gosto d’andar nas rodas.

Que quantas mais, mais detido
a cada uma per si;
nem cansa tanto o que vi,
nem fica o gosto partido;
ao contrário, é acrescido
a cada uma per si!

No paladar de mudar
mais se sente o gosto agudo:
que amar nada ou amar tudo
é estar pronto a muito amar;
o enjoo vem de não estar
a par do nada e do tudo.

Mais fàcilmente se chega
pera muitas que pera uma;
e a razão é porque, em suma,
se esta razão me não cega,
quem quer que muitas adrega
é como tendo… nenhuma!

Com muitas, descanso vem,
faz o desejo acrescido:
que é o mais apetecido
aquilo que se não tem;
e o apetite é o bem;
e em saciá-lo é perdido.

Também a mulher que tem
seu marido repartido
é mais gostosa do bem
que advém de seu marido!

Tão gostosa e recolhida,
tão pronta e tão conformada,
quanto o gosto é não ter nada;
porque o gosto é ser servida
e não o estar contentada.
O gosto é cousa corrente,
e quem o tem já não sente
o gosto dessa corrida,
que tê-lo, é cousa… jazente…
que tê-lo, é cousa… perdida!

Ora, pois, nesta jornada
não vi nada mais de amar
que ter muito por chegar
e cousa alguma chegada;
não vi nada mais de ter…
que ter muito que perder…
e cousa alguma ganhada!

 

 

 

In “Cancioneiro do Salão dos Independentes”

– Líricas Portuguesas  

Portugália Editora – 3.ª Série

 

Mário Saa

1893 – 1971

 

 

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Quarta-feira, 1 de Setembro de 2010

Recordando... David Mourão-Ferreira

PRAIA DO ENCONTRO

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.


In "Tempestade de Verão" – Obra Poética

Editorial Presença

 

David Mourão-Ferreira

1927 – 1996

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