Terça-feira, 28 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... Inês Lourenço

RUA DE CAMÕES

 

A minha infância
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe

Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho

Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva

Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto

E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça

O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia

Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão

A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes

Não olhes para os rapazes
que é feio.

 

 

In “Um Quarto com Cidades ao Fundo” – poesia reunida (1980-2000)

Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão, 2000

 

Inês Lourenço

N. 1942

 

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Sexta-feira, 24 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... António de Sousa

AO PORTO

 

Ó meu severo berço de granito!

(Este lembrar-te é um luar do fim?)

Vi os fiords – não valem o teu rio!

O melhor da tua força manda em mim.

 

A tua fala é um gume leal.

Avulso, o teu sabor independente,

amigo ou inimigo – uma só fé!

Quando a névoa te cobre – um rosto ausente.

 

 

In “Linha de Terra”

Editora Inquérito – Lisboa – 1951

 

António de Sousa

1898 – 1981

 

 

 

 

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Segunda-feira, 20 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... Laureano Silveira

MAR

 

Há um retrato de grupo muito particular

que me é especialmente caro,

algo assombroso

e que eu guardo em frente

a certos livros, numa estante

que confina com a passagem para a varanda

de onde se avista o mar

em minha casa.

 

Quando o olho vejo o mar

que instantaneamente assalta

a periferia da visão

e perturba levemente

a relação de transparência

que eu desejaria estabelecer

com as personagens.

 

Quando, pelo contrário, olho o mar

vejo-as a elas

e as figuras ascendem à condição de viventes

na reminiscência

e na memória.

 

E contudo

eu desconheço-as.

Formam um grupo anónimo

que recortei de um lugar

onde as acompanhava a sua história.

Que não li.

 

São três homens de meia idade,

duas jovens mulheres,

uma criança.

 

Não sei porque os amo.

Sei que estão todos mortos.

 

 

Foz do Douro, 1998

 

In “Os Retratos” – Edições Pedra Formosa – Guimarães

 

Laureano Silveira

1957 – 2008

 

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Quinta-feira, 16 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... José Tolentino Mendonça

O ÚLTIMO DIA DO VERÃO

 

Pois às vezes me falta a quem contar

certo dia passado de princípio ao fim

o encanto que tenha realmente

a insistência do vento ao longo da Foz

aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

 

Nascemos e vivemos só algum tempo

não temos nada

não podemos mesmo na penumbra

decidir a atenção ou o esquecimento

as forças soçobram como vagos motivos

em público

e em qualquer lugar

 

Por isso sei tão bem o valor

da natureza indiscutível dos teus olhos

onde a luz anota seus aspectos

teus olhos impacientes e irrealizáveis

que me acompanham

agora que sozinho danço

na cidade vazia

 

 

In “De Igual Para Igual” – Poesia Inédita Portuguesa

Assírio & Alvim – 2001

 

José Tolentino Mendonça

N. 1965

 

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Domingo, 12 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... Egito Gonçalves

O ARCO DE SANTANA

 

Debruçámo-nos no parapeito,

sobre a Igreja dos Grilos,

Garrett atravessa o Arco de Santana,

atinge o largo fronteiro à igreja

e começa a imaginar o seu romance:

a história do burgo, a exclusão

medieval da fidalguia. O dédalo

de ruas sujas faz nascer a intriga

que poderá desenvolver se as bocas

dos canhões da Serra do Pilar não

ferirem o dia do Batalhão Académico

instalado nos Grilos. O barroco

da frontaria interessa-o, discutiu

com o soldado Herculano a traça

do abrigo em que repousam. Cercados,

sem saber das sortes do dia de amanhã

que pode ceifar sonhos. A morte

presente filtra milhares de coisas

que buscam o seu desenho no incerto

futuro. Nascido na rua do Calvário

na transição do século não espera

mau augúrio desse facto. A vida terá

de lhe ser dominada e fiel. Esta tarde,

se o tiroteio não for impeditivo,

vai começar a escrever. Deste muro,

olhamos a frontaria deserta; ninhos

de andorinhas entre as volutas. Sonhamos

o soldado Garrett: ele detém-se antes

de entrar na gélida penumbra

do abandonado convento, segue

por alguns segundos o voo das aves

– e o das suas ideias –. Volta-se,

olha o céu, já se ergue um vento

que traz do Sul as nuvens. Pode até

chover. Será, para trabalhar o destino

de Aninhas, uma tarde propícia.

 

 

6.2.97

 

In “Daqui Houve Nome Portugal”

Org. de Eugénio de Andrade – Edições Asa

 

Egito Gonçalves

1920 – 2001

 

 

 

 

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Quarta-feira, 8 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... António Rebordão Navarro

AS MULHERES DA CANTAREIRA

Naturalmente, antes de as manhãs
pegaram fogo a todas as palmeiras,
gastaram elas os perfumes nas rochas,
levaram os seus seios para as ondas,
lavaram os seus sexos no rio,
lavraram os limos com os lábios.

Anteriores às gaivotas,
desenharam o seu voo nas águas,
descrevendo na areia
o coleante deambular dos vermes,
vendidos no termo das semanas
aos amantes da pesca.

Virtualmente, antes de o Inverno
lhes mudar o semblante,
comer à sua mesa e violá-las,
elas eram só música,
trazendo, levando, conduzindo
todos os barcos pelo mar do seu corpo.

Mais antigas que os ventos e a paisagem,
muitas vezes fizeram de sereias,
de estrelas breves consumidas
em vinho ou em cerveja,
outras de frio aço e aguardente,
alguns momentos de tabaco loiro.

(São putas? São fidalgas? São senhoras?
Netas bastardas de Raul Brandão?)

Meigas, transparentes, adejantes,
antes de os elementos
cismarem em criá-las,
já elas eram feitas
como deusas cumpridas
em fumo, mito e névoa.

Como estátuas fenícias?
Como estátuas.

 

 

In “A Condição Reflexa” – (Poemas, 1952-1982)

Imprensa Nacional – Casa da Moeda

 

António Rebordão Navarro

N. 1933

 

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Sábado, 4 de Outubro de 2008

Recordando... Poetas que deram "voz" ao Porto (2)... Isabel de Sá

DESCIA A NEBLINA

 

Na pastelaria duas

prostitutas conversavam. A magreza

de uma delas impressionava.

Não havia mais ninguém. Cadeiras

alinhadas, mesas vazias. Tudo limpo,

espelhos sem mácula. Os criados

pareciam estátuas por detrás

do balcão. Na rua, os automóveis

conduzidos por loucos. Em plena

cidade, quase aldeia, tal

velocidade é para matar.

 

Ao sair, o ruído era semelhante

à imagem do Inferno reproduzida

no catecismo. Descia a neblina

sobre os prédios, gaivotas

vinham da Foz. Um mendigo de barbas

atravessou a rua, despreocupadamente.

 

 

In “Erosão de Sentimentos”

Editorial Caminho

 

Isabel de Sá

N. 1951

 

 

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